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Tratado da Mulher Contemporânea (dir. Alexandre Ogata, no Viga)


Chego muito cedo ao teatro Viga e espero impaciente por algo que me faça sair desse ambiente repleto de gente falando.
A peça é um monólogo. O flyer já diz a que ele veio: é uma mulher que decide se prostituir.
Ela dirige-se a alguém e fala como se fosse íntima dessa pessoa. Explica, primeiro, como se deu o rompimento da corrente que a mantinha presa a uma vida que não era sua - ou que ao menos assim parece. A atriz (Samantha Maneschi) é carismática, e vemos as decisões sendo tomadas com a simplicidade que a personagem faz crer que domina os seus dias.
Ela se encontra. Diz o preço justo, mas que não é o seu preço. Ela parece estar sempre de fora.
Os homens aparecem em trechos gravados de programas. Ela os ouve com certa aflição, que contamina a plateia. É estranho ouvir os outros lados da moeda. Afastamo-nos, por meio deles, do universo íntimo da personagem, e tudo acaba adquirindo um matiz mais cinzento. O transcorrer do tempo mostra o constrangimento em uma situação que, ela diz, não a afeta.
O monólogo torna-se mais profundo quando ela questiona o estilo de vida de quem assumiu o destino tradicional. Casamento, filhos, decepções. Ela não se cansa de repetir que ela não, ela não se manteve presa a esses condicionamentos. Pode ser, mas o fato é que, quando solicitada (por ela mesma), ela não consegue colocar nada no lugar. Mesmo quando se remete a uma mulher idosa que tira a roupa e monta uma parede, dançando como ela só. Não vemos em que ela pode se tornar.
Ao final, uma surpresa que de certa forma assume o papel de anticlímax. O mais importante já foi, mas ele parece adquirir menos importância em função da revelação. Ela assume sua fragilidade, apesar de tudo, e deixa-se estar no tempo e no espaço de uma luz que cai gradativamente até ser retida em nossas retinas.
É longo, o monólogo, mas não se percebe. Ela, a atriz, faz todo o trajeto com aparente facilidade e ligeireza que chegam a quase comover. É um trabalho de fôlego que parece carregado por ela, sozinha, quando na verdade há uma equipe por trás.
Mas é uma peça para um público em especial. Nada do público que compraria um livro da Bruna Surfistinha. Aqui, a leveza e singeleza assumem um ar que nada tem de tosco, mas que fala à existência de cada um.

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