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Diário Baldio, 7/8/2011, Tusp, BarracãoTeatro

Estréia. Platéia pela metade, o espetáculo começa com sons de rua.
Aparece aos poucos Lady, o travesti criação de Gabriel Bodstein. Entramos em seu universo idealizado, de paraíso em meio ao lixo. Não sinto muita empatia.
Surge Cotoco (Esio Magalhães). Um ser deformado. Só dá para ver um de seus olhos, e mesmo assim com dificuldade. Não fala, grunhe. Não mexe os braços, os desloca desajeitadamente. Não anda, escorrega com os cotos, com os joelhos.
Trava-se o contato. No começo uma distância entre Lady e Cotoco. Aos poucos, Lady embarca na expressividade dos recursos do meio-animal. Que de meio-animal não tem nada. Sabe tocar flauta. Anda de skate. Mas mantém com o mundo o olhar de uma criança. Sempre algo a descobrir, o espanto, a empatia com qualquer detalhezinho do mundo.
Sinto-me desfalecer ao me identificar com o ser que conquista a todos com sua inteligência, mascarada por uma aparência que faz jus contudo à sua condição de excluído. Cotoco rouba a cena.
Poderia estender-me linhas a fio pela primeira ocasião em que Cotoco surge como personagem. Dizendo pa-pa-pa-uh!, pontuando o som de uma bola quicando no chão. Ou pelo momento em que se mostra músico, repetindo-retrucando a melodia rasteira de Lady, ao cumprimentar o dia. Ou pelo momento em que ele, Cotoco, descobre o som de uma bexiga, seja amassando-a até estourar, seja forçando o ar, deixando-o escapar num ihhhhh inconfundível. E ele pega uma camisinha usada!!!! Que nojo!!!! E ele a faz encher com uma bexiga!!!! Esquecemo-nos da realidade rasteira em que eles estão metidos até o pescoço. Ou pelo momento em que ele faz-se de morto, como um cão, e revive ele mesmo dado que Lady deixa de lhe dar atenção. Ou pelos momentos em que Cotoco se desespera, com o estourar da bexiga, com a raiva de Lady, com tudo o que nos faz crer o quão triste é seu retrospecto, que imaginamos, sua vida.
O espetáculo é uma tragédia, diz Esio em Zibaldone, 1 - Dramaturgias Contemporâneas, caderno de ensaios do Barracão Teatro. É lá que ele narra, passo a passo, a descoberta do personagem. Tudo tão difícil quanto a vida de um ser como aquele.
Lembro-me de minha visita ao Pequeno Cotolengo, com minha mãe, para levar umas roupas e uma tevê. Não aguento ao ver aqueles seres sem pernas, sem braços, sem nada. Para que dar calças a eles, se nem pernas têm???? Sofro. E respeito ainda mais minha mãe. A vida pode ser isso mesmo, talvez seja isso mesmo e nós, que algo podemos, não vemos. Ou vemos só de relance, quando compramos uma revista Ocas daqueles sujeitos com olhar vazio, com que tanto vêem. Lembro-me do Sérgio, um deles, com pé machucado, que ajudei algumas vezes. Talvez esteja numa casa de sem-tetos, talvez esteja vendendo suas revistas, talvez tenha desistido e morrido. Lembro do meu pai.
Não entendo a invasão da realidade por um fumante de crack. Pela metade da trama.
Não narrarei o fim do espetáculo, que dizem dever à Commedia dell'arte. Não sei. Sim, não há praticamente enredo, tudo muito rasteiro, sem clímax, sem eventos, sem tramas, sem nada. Só a relação entre Lady e Cotoco, vestido ora como mulher ora vestido como sapo que se quer príncipe, pela Lady. Há algo de fraco nisso tudo? Não sei. Sei que esqueço, ao reparar sem cessar naquilo que é o Cotoco. Tudo uma desculpa para um brilho absoluto, é o que parece. Sai na Folha que seria um bufão. Como assim? Não vejo nada nesse sentido, quando muito o final, em que Cotoco se mostra como ser finito em meio a outros seres finitos. Crítica à sociedade? Só forçando a barra. Cotoco não é um bufão. Cotoco é uma espécie de palhaço, só isso me faz crer.
Termina o espetáculo, com lágrimas que não correm, mas com infinita curiosidade em conhecer o Esio, que dá vida ao Cotoco. É ele que apresenta o trabalho da companhia, e que convida para o Encruzilhados, que tentarei ver.
Mas saio com algo do coração na mão. Que esqueço ao ligar o rádio.
Valeu a pena o retorno à platéia, tentando voltar ao palco que mal reconheço.

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