Pular para o conteúdo principal

Festim Diabólico (dir. Alfred Hitchcock)


Revi a versão filmada dessa peça anos após a primeira vez.
O que me atrai em especial no filme é a opção por planos-sequência longos, quase a perder de vista, algo que, conforme o making off, só ficou desse jeito porque as bobinas não duravam mais do que 10 minutos. Para mim, a opção, que aproxima o filme de uma peça de teatro, evita a distração dos cortes seguidos e torna o espectador mais atento do perfil do personagem. Como quem vê repara, os cortes vão sempre ou quase sempre nas costas de um personagem.
Mas isso, embora seja relevante, não é o mais importante.
Neste filme, torna-se claro que a câmera pensa. Ela conduz-se sempre cirurgicamente nos pontos importantes da trama. Como quando se aproxima de objetos ou das mãos que os seguram, independente da ocorrência de diálogos que poderiam fazer crer que as feições e expressões dos rostos teriam de ser mais importantes. Não, nada disso. O que importa é a sequência que faz o espectador pensar e sofrer com o que vê. A câmera que pensa também faz crer que não sabemos como tudo vai acontecer, embora já saibamos que tal determinada conclusão vá acontecer. O suspense fica restrito ao como e não ao o quê. Este torna-se quase irrelevante. Por exemplo, ao final. James Stewart poderia ligar e chamar a polícia. Não, ele simplesmente abre a janela e dá três tiros. Claro que aqui a conclusão é diversa. Ele não chama a autoridade. Ele simplesmente joga o problema para a sociedade, que ouve os tiros e chama a autoridade. Os jovens serão julgados por ela, a sociedade, e não pela polícia ou pelo juiz. Como a escolha não recai no óbvio, o efeito torna-se ainda mais forte (cumpre aqui dizer que discordo do roteirista original, diria, o roteirista da versão final do texto, que afirma que por não criar determinado tipo de suspense a trama torna-se enfraquecida. Muito ao contrário).
Termino chamando a atenção para a sequência em que a empregada retira os candelabros e a toalha do baú que serviu de mesa de jantar. Enquanto os diálogos correm, a câmera permanece parada e apenas, tão somente, mostra a empregada indo e vindo. O suspense fica introjetado em nós. Chega a doer. Ao final, tudo vira nada - pois o jovem ordena que a empregada não guarde os livros no baú em que jaz David, o rapaz assassinado. Há uma certa decepção nisso, claro. Mas o suspense foi criado com recursos mínimos. E isso vale totalmente a pena.
Reverei várias vezes ainda a fita: ela revela muito mais do que aparenta à primeira vista.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm...

4.48 Psicose (peça de Sarah Kane, tradução de Laerte Mello)

Há realmente algo de muito estranho e forte nesta última peça da Sarah Kane. E não é porque ela se matou em seguida, aos 28 anos. O assunto é claro desde o começo: uma depressão mortal. É como se fosse um testamento. Muitos lados da questão são expostos de forma esparsa - não sei se todos nem se isso afinal é possível -, e ao final da leitura a gente fica com um sabor amargo na boca. Dá vontade de reler, muito embora passe o desejo de decifrar. Isto torna-se secundário, aqui. Há algo que permanece, e creio que isso se deva à qualidade do que é feito e à integridade do que é dito. Pego por exemplo, já na primeira página: "corpo (...) contém uma verdade que ninguém nunca fala". É óbvio do que se trata: da extrapolação do fisiológico, de uma lógica de que por mais que se tente diagnosticar "nunca se fala". Abre-se uma porta à compreensão disso que não sabemos muito bem o que é. A força de "Lembre-se da luz e acredite na luz/ Um instante de claridade antes da ...

algo sobre wilson e kantor

difícil não se sentir provocado ao ler e refletir algo sobre o legado de bob wilson. digo ler e refletir porque nunca vi nada DELE. e aquilo que tem no youtube, embora bonitinho, deixa demais a desejar, após ter lido o livro do galizia (os processos criativos de robert wilson). o fato é que ele, assim como o kantor, deixam-me a impressão de não, nunca ter assistido a nada similar àquilo que eles há tempos já fizeram. como sentir um déja vu face um espetáculo em que nada acontece, e em que os vivos mais parecem mortos, e os mortos (bonecos) como que expressam a vida (kantor)? (se é que eu entendi bem). dele, do kantor, a gente acha algo mais convincente no youtube. mas do wilson, nada. ou muito pouco. bob wilson convenceu-me por exemplo de que não precisamos seguir a rota dos clássicos - e por clássicos me refiro a todos esses que vemos citados aqui e acolá, por gente culta ou nem tanto, como referidos à arte contemporânea. não, realmente não preciso - mas posso querer - ler sobre o fut...