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A História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais, de Matéi Visniec (É Realizações Editora) (leitura completa e reflexiva)


À juventude que hoje domina a realidade dos recursos de informação e o imaginário desses que não são mais tão jovens pode parecer que o comunismo e realidades relativas a ele são inatuais e desimportantes. Seja como for, a mim isso não consegue convencer. Não deixa de ser um problema que para convencer-nos do contrário tenhamos de nos submeter à lenga-lenga de gente velha que parece desconectada da realidade dos dias de hoje. Cumpre ao intelectual ou ao pretendente a um mudar essa situação.
É por isso que antecedo com essa introdução de tom deveras assoberbado este breve texto em que teço algumas considerações sobre mais esta peça de Matéi Visniec, esta que até agora me causou a mais forte impressão dentre todas as que a editora É Realizações me mandou nos últimos dias. É foda, mas saí acabado após a sua leitura.
O título pode enganar. Por doentes mentais podemos, é claro, entender simplesmente doentes mentais. Mas para quem sabe ou já ouviu falar daquilo que aconteceu no mandato ditatorial desse que se intitulava o pai dos povos tudo torna-se mais liquefeito. Por doentes mentais podemos quem sabe entender gente sã. Ou gente presa. Ou gente dominada. Ou gente pacífica. Ou qualquer coisa.
A trama da peça é simples. Um escritor premiado pelo regime stalinista é convidado a ensinar a doentes mentais leves, médios e graves as lições do socialismo à la Stálin poucos dias antes de sua própria morte. Eis o que Iuri, que é o seu nome, faz o tempo todo. Em diálogos em que perpassa claramente toda a gravidade e horror do poder autointitulado por um ditador sanguinário, vemo-nos entrando no subtexto que pode querer dizer tudo, menos aparentemente aquilo que é propriamente dito. Sentimos a dor do indivíduo que não sabe mais o seu destino. Sentimos o desprezo do futuro por acólitos do poder. Sentimos o desespero desse que não mais contém o seu próprio pensamento.
Não vou dizer muito mais. Não vou lhes retirar o prazer e a dor de ver tudo o que eu já disse expresso em curtos atos regados a um certo humor restante àquele que conseguiu sobreviver - refiro-me ao autor, claro. Leiam vocês mesmos e sintam na pele aquilo que muitos e muitos livros de história podem não conseguir apresentar àquele que ignora a que ponto o poder pôde chegar.
Enquanto isso, eu irei mais uma vez ler as biografias desses safados e dos muitos que ficaram no meio do caminho por simplesmente estarem no meio do caminho da MÁQUINA.

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