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Os Credores (de August Strindberg, pela Cia Mamba e Nelson Baskerville, direção de Baskerville)


Assisti a leitura que a Cia. Mamba e o Nelson propuseram à peça de Strindberg, montada quase simultaneamente pelo Grupo Tapa, por diversos motivos, dentre eles conferir a atuação da Cacá (Carolina Mânica), que conheço desde que me meti a enfrentar o teatro motivado pelo Gerald, e que nunca vi atuando, pela curiosidade com uma leitura modernizante da peça de cujos diálogos eu quase me lembro ipsis litteris (por haver assistido 3 vezes com o Tapa) e pelo prazer de comparar duas formas diametralmente opostas de expor o universo do autor.
Perpassando a peça de cabo a rabo, a relação dos protagonistas com a arte (no caso dele, a pintura e a escultura, e dela, a escrita) é o mote que fez com que o Nelson e a Cia. Mamba inserissem, como que a dialogar com todo o enlace e desenlace, referências ao ato de esculpir (peças, faces, corpos, imagens) e ao diálogo com a arte enquanto reveladora da relação dos protagonistas com a vida. A Cacá, o Flávio (Barollo), o Bruno (Perillo) e a Isa Bela Alzira tratam-se pelos nomes, e quando em cena, ou fora do foco da cena, lidam com as massas, a moldar quase sempre cabeças que representam a construção/reconstrução/desconstrução das personas/pessoas. Uma arte acrescida é a música, no caso, que é desempenhada por todos, em revezamento e que privilegia uma MPB de elevada qualidade.
Além de se tratarem pelos nomes reais, o tratamento mais informal distancia a encenação do texto cru do sueco. Palavrões ditam a norma vez ou outra, e referências ao fato de tudo ser uma peça e de os atores serem pegos pelo pescoço pelas próprias exigências físicas ou psicológicas (nus, no caso) fazem desde já com que a peça dialogue mais facilmente com o público, em sua grande maioria jovem. O visual contribui para isso, mas não esgota as possibilidades, sempre recriadas pelos atores no decorrer da história. A história, no caso, é a relação entre Cacá e Flávio, após um casamento da primeira com o Bruno, que ela largou pelo primeiro, e da decadência deste pela satisfação das vontades dela, uma delas, no caso, referida à vontade de se ter um relacionamento aberto, e não mais fechado, como o primeiro.
Não vou contar a história nem o desenlace, muito embora a peça não tenha outra temporada em vista (as últimas semanas, ela foi encenada no Centro Cultural). Digo apenas que vez ou outra a forma mais leve de tratar o texto descambou em certo esgarçamento da trama e que o fim, com uma música de amplo conhecimento, revelou novamente o artifício do Nelson de tentar acabar com uma espécie de mensagem e com uma satisfação popularesca pelo universo pop - que faz sucesso. Mas são detalhes.
A peça agradou muito e me ajudou também a refletir sobre o relacionamento de 11,5 anos que acabou há 1,5 ano e do qual ainda peno para recuperar o fôlego. Grato.

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