Pular para o conteúdo principal

4.48 Psicose (peça de Sarah Kane, tradução de Laerte Mello)

Há realmente algo de muito estranho e forte nesta última peça da Sarah Kane. E não é porque ela se matou em seguida, aos 28 anos.


O assunto é claro desde o começo: uma depressão mortal. É como se fosse um testamento. Muitos lados da questão são expostos de forma esparsa - não sei se todos nem se isso afinal é possível -, e ao final da leitura a gente fica com um sabor amargo na boca. Dá vontade de reler, muito embora passe o desejo de decifrar. Isto torna-se secundário, aqui. Há algo que permanece, e creio que isso se deva à qualidade do que é feito e à integridade do que é dito.

Pego por exemplo, já na primeira página: "corpo (...) contém uma verdade que ninguém nunca fala". É óbvio do que se trata: da extrapolação do fisiológico, de uma lógica de que por mais que se tente diagnosticar "nunca se fala". Abre-se uma porta à compreensão disso que não sabemos muito bem o que é. A força de "Lembre-se da luz e acredite na luz/ Um instante de claridade antes da noite eterna/ não me deixe esquecer" é patente demais. Até demais. E o que esperar de números jogados na página em ordem decrescente, sem qualquer (sem qualquer?) lógica entre si? E de "por não ter nada a dizer sobre minha 'doença' que de qualquer maneira é apenas saber que não há significado em coisa nenhuma porque eu vou morrer"? Numa primeira leitura, tudo parece fake demais. Mas depois da leitura completa, com o amargor na boca, tudo assume uma outra dimensão. Repito, não é por saber que depois da escrita da peça ela se matou. Seria desmerecer o que se lê, o que se infere deste lamento compungido em frases e toques que muitas vezes, muitas vezes, parecem não ter sentido algum.

Mas por outro lado reflito e me vem a impressão do mal que ela parece haver causado à autoria para o teatro fazendo as coisas como fez. Pois hoje parece ter virado moda não respeitar qualquer convenção, jogar tudo na página, confundir vozes, deixar palavras soltas no ar, como se devessem ser decifradas, e vejo isso em todo lugar - e não me convence. Não como esta peça, sem querer, me convenceu. Por que sem querer? Porque não queria realmente encontrar algo bom nesta bagunça toda. Mas achei.

Vocês podem achar o texto na internet em diversas versões. Esta, foi a Dani que nos deu em sua oficina.

São 28 páginas de puro desespero. Que recomendo.

Comentários

Unknown disse…
Oi Rodrigo, queria saber onde rolou esse wshop/oficina com as obras da Sarah Kane. Sou Laerte Mello, o tradutor das peças dela aqui de São Paulo e seria legal trocar ideia com a Dani. Vou estrear Psicose na próxima segunda e gostaria de falar com a Dani sobre isso. Obrigado abraço - gostei das suas reflexões sobre Detonado (Blasted) e Psicose. Valeu
Unknown disse…
Oi Rodrigo, passe, por favor, meu contato para a Dani. Estou estreando Psicose 4h48 e queria saber dos wshops que ela dá com os textos da Sarh. LGostei de suas reflexões sobre "Detonado" (Blasted) e Psicose. Obrigado Laerte Mello
Unknown disse…
Oi Rodrigo, queria saber onde rolou esse wshop/oficina com as obras da Sarah Kane. Sou Laerte Mello, o tradutor das peças dela aqui de São Paulo e seria legal trocar ideia com a Dani. Vou estrear Psicose na próxima segunda e gostaria de falar com a Dani sobre isso. Obrigado abraço - gostei das suas reflexões sobre Detonado (Blasted) e Psicose. Valeu

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm...

(Em) Branco (de Patricia Kamis, dir. Roberto Alvim, Club Noir, 3as a 5as durante o mês de agosto)

Fui à estreia da segunda peça da leva de oito novos selecionados que o Alvim vai encenar municiado de sua leitura na noite anterior. Esperava ver algo relativamente tradicional e nutria um certo receio de déja vu. A atriz e os dois atores permanecem estáticos em quadrados iluminados por baixo. O caráter estático não se refere apenas ao corpo em contraponto com o rosto, mas também a este, mutável apenas (e repentinamente) por expressões fugazes. Os olhares permanecem fixos. O texto segue a ordem 1, 2, 3 (segundo o Alvim, emissores mas não sujeitos), que eu imaginava que iria entediar. As falas são ora fugazes ora propositalmente lentas e sua relação tem muito a ver com o tempo assumido em um e outro momento. Não irei entrar no âmago da peça. Nem irei reproduzir o que a própria autora, o dramaturgo Luciano Mazza e o próprio Alvim disseram no debate posterior a ela. Direi apenas que durante ela nossa sensibilidade é jogada de um lado a outro num contínuo aparentemente sem fim sem c...