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Adaptação - Being There (Muito além do jardim), a partir de Being There (O Vidiota), ambos por Jerzy Kosinski

Estou refletindo de forma continuada naquilo em que consiste uma adaptação e se há, digamos, regras ou direções a tomar para realizá-la adequadamente. Venho utilizando dois estudos de caso para entender algo a respeito. Um deles é a peça Mulheres, do grupo Cemitério de Automóveis, baseada no livro homônimo do velho Bukowski, e o outro, o filme Muito além do jardim, de Hal Ashby, baseado em Being There (O Vidiota), de Jerzy Kosinski. Neste último caso, o livro e o roteirista são os mesmos, o que me leva ainda mais a usá-lo como, digamos, exemplo.


Falarei do segundo caso. Este artigo parte do pressuposto de que o leitor tenha lido o livro e assistido o filme.

O livro trata de forma muito mais superficial eventos que no filme levam bastante tempo ou requerem um tratamento mais detalhado, além de tratar de outra forma certos detalhes que fazem corpo no livro. Por exemplo, Chance, no livro, vive numa casinha separada do corpo principal da residência de O Velho. Não tem contato com praticamente ninguém, vivendo praticamente recluso. Já no filme Chance vive na casa principal e tem contato diário com a governanta e com o Velho, que vem a morrer. O filme trata de forma inteiramente visual tanto a saída de Chance da casa em que viveu até então quanto o encontro, por acidente, com a sra. EE e seu marido doente. Por sua vez, o livro descreve, às vezes minuciosamente, o que Chance está pensando, e isso, no filme, só podemos inferir. Não temos certeza de como ele, Chance, se sente e vê o mundo. A ligação entre o que ele pensa e o fato de utilizar a tv como único intermediário entre ele e o mundo é tratada no filme de forma imitatória, o que é muitas vezes engraçado, mas nada profundo.

O filme nesse sentido vai numa direção que difere da leitura que o livro pode dar. Por outro lado, há, em todo o filme, se o assistirmos com cuidado, certos indícios de que a espinha dorsal da obra escrita se mantém no roteiro do filme. Diria que esses indícios são os trechos de filmes, propagandas, clipes, etc. que são escolhidos para preencher os buracos que perfazeriam a mente de Chance. Por exemplo, quando ele chega à casa de Rand, o milionário, passa no filme um clipe animado em que um garoto negro canta sua necessidade de apoio por parte da sociedade enquanto joga basquete. Ou, no caso de quando Chance assiste sua própria aparição no programa de auditório: de repente, ele muda de canal e cai numa demonstração patética de coreografia, digamos, selvagem num outro programa. O momento em que ele imita o negro da charrete, em relação a Louise, é exceção, se avaliarmos o filme como um todo. Há, nos trechos de vídeos escolhidos por Kosinski para o filme, toda uma superficialidade que descamba para o vazio - tudo torna-se, por esses trechos, mero objeto a ser apreciado e a ser degustado enquanto consumo. Isso corrobora a sensação que auferimos ao ler o livro. Neste, a tv surge como única referência empática entre Chance e o mundo: e isso fica claro no vazio que Chance, no filme, experimenta ao viver no mundo real. Os trechos de vídeo escolhido pelo roteirista expressam esse vazio e levam à mesma conclusão empática. Chance, no filme, não sabe como fazer se não vê similitudes na televisão - ou seja, sendo assim, enfrenta o mesmo vazio de não saber como responder empaticamente aos impulsos a que se vê sujeito.

Considero assim que, tomados todos os exemplos do filme e do livro, há nas duas obras uma certa linha mestra que se mantém, muito embora todo o tratamento que se dá às cenas conduza por vezes a direções insuspeitadas, muitas vezes cômicas. No livro, há pouco do que rir. Tudo é mais chapado. A empatia é mais rarefeita. O entendimento é mais refletido do que inferido por meio de situações engraçadas. Mas o norte se mantém. Estamos, em última instância, falando da mesma obra com linguagens diferentes, apenas.

Agora cumpre analisar o caso da peça Mulheres, do grupo Cemitério, em relação ao livro original de Bukowski.

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