Pular para o conteúdo principal

o inferno em mim (texto: mário bortolotto) - a enésima vez

à tarde deu-me uma imensa vontade de assistir novamente a última peça do marião. vieram-me à mente cenas, imagens, diálogos, entonações, tudo de que já tanto curti que nem me lembro mais.


foi a enésima vez que a assisto.

sim, claro, contribui que a cada vez me sinto mais à vontade entre o pessoal.

mas realmente eu sentira saudade dos personagens.

pena que daqui a pouco eles voltarão a ser o que são - ficção a ser encenada.

nem vou falar do que trata a peça porque eu já disse, não tenho a menor vontade de repetir, e nem faço questão de motivar quem quer que seja a vê-la - claro que tendo sempre mais gente fica mais legal, claro. escrevo simplesmente pela curtição de rememorar os personagens. os diálogos. as cenas que me fazem rir, sorrir, sempre, e ampliar, sempre um pouco mais, o entendimento de nosso mundo. sem pretensões. é teatro. sabe, teatro?

mas algo mais ficou - de que não fazia conta.

em minha vida de 45 anos, houve ao menos três momentos em que tudo, o barco todo, virou.

o primeiro foi um ato de violência.

o segundo, uma desistência.

o terceiro, uma profunda vergonha acrescida de um orgulho desmedido, quase simultâneo.

lembro-me desses momentos como se os revivesse a todo instante.

o primeiro poderia ter-me quebrado por inteiro. mas eu soube superar. a violência às vezes é mesmo necessária - e, cá entre nós, dá também uma satisfação desmedida. a crueldade presente em todos nós.

o segundo foi o ápice de um processo que me levou a paroxismos. eu desisti e joguei tudo para o ar. lembro-me exatamente do momento em que tomei a decisão. eu mal imaginava o que me esperava. algo que chegou, levou alguns anos, mas caiu como uma porrada enorme na cabeça - da qual eu nunca mais me recuperei.

o terceiro foi consequência tardia do segundo ato. com ele, viraria persona non grata. seria obrigado a enfrentar todo mundo no olho, com uma vergonha encalacrada, mas também com o orgulho de ter enfrentado tudo e todos. foram meses, anos até, de enfrentamento surdo. havia o motivo da vergonha, sim. mas havia também o orgulho de não arredar pé. obrigaria os outros a se defrontarem perante algo que não aceitavam sem saber contudo como reagirem. essa vergonha iria ser acompanhada de uma vingança. aquele jogo surdo que só assume quem tem o poder e sabe usar da arbitrariedade. nunca mais também eu iria me recuperar.

o que é em parte mentira. foi graças ao teatro, creio, que eu consegui voltar à superfície e respirar.

na peça, um dos motoqueiros mata o pai com um tiro de glock. é condenado, não se arrepende, cumpre a pena e toda a peça gira ao redor disso, da presença de um deus que desconhecemos e que talvez nem exista, e dos dilemas a que todo ser humano é por vezes sujeito. aquele momento em que chuta o pau da barraca. o que sobra, depois? sobra alguma coisa?

devo ter sido o cara que mais assistiu a peça nos últimos meses.

legal, isso.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm...

4.48 Psicose (peça de Sarah Kane, tradução de Laerte Mello)

Há realmente algo de muito estranho e forte nesta última peça da Sarah Kane. E não é porque ela se matou em seguida, aos 28 anos. O assunto é claro desde o começo: uma depressão mortal. É como se fosse um testamento. Muitos lados da questão são expostos de forma esparsa - não sei se todos nem se isso afinal é possível -, e ao final da leitura a gente fica com um sabor amargo na boca. Dá vontade de reler, muito embora passe o desejo de decifrar. Isto torna-se secundário, aqui. Há algo que permanece, e creio que isso se deva à qualidade do que é feito e à integridade do que é dito. Pego por exemplo, já na primeira página: "corpo (...) contém uma verdade que ninguém nunca fala". É óbvio do que se trata: da extrapolação do fisiológico, de uma lógica de que por mais que se tente diagnosticar "nunca se fala". Abre-se uma porta à compreensão disso que não sabemos muito bem o que é. A força de "Lembre-se da luz e acredite na luz/ Um instante de claridade antes da ...

(Em) Branco (de Patricia Kamis, dir. Roberto Alvim, Club Noir, 3as a 5as durante o mês de agosto)

Fui à estreia da segunda peça da leva de oito novos selecionados que o Alvim vai encenar municiado de sua leitura na noite anterior. Esperava ver algo relativamente tradicional e nutria um certo receio de déja vu. A atriz e os dois atores permanecem estáticos em quadrados iluminados por baixo. O caráter estático não se refere apenas ao corpo em contraponto com o rosto, mas também a este, mutável apenas (e repentinamente) por expressões fugazes. Os olhares permanecem fixos. O texto segue a ordem 1, 2, 3 (segundo o Alvim, emissores mas não sujeitos), que eu imaginava que iria entediar. As falas são ora fugazes ora propositalmente lentas e sua relação tem muito a ver com o tempo assumido em um e outro momento. Não irei entrar no âmago da peça. Nem irei reproduzir o que a própria autora, o dramaturgo Luciano Mazza e o próprio Alvim disseram no debate posterior a ela. Direi apenas que durante ela nossa sensibilidade é jogada de um lado a outro num contínuo aparentemente sem fim sem c...