Assistindo novamente
Laranja Mecânica e lendo algo do material contido no livro que o Sesc
distribuiu sobre sua Retrospectiva Sam Peckinpah, peguei-me refletindo
brevemente sobre a violência - em si e nos filmes e peças e tudo o mais. Um
tema escabroso para a maioria - ninguém parece gostar da violência, o que é
estranho na medida em que é o próprio ser humano que a comete - e tabu para
outros - há quem diga que nunca usa de violência, o que, em termos mais
teóricos, resulta quase impossível. Violência para mim não é, já ressalto,
necessariamente o uso da força. Uma atitude arbitrária para mim é violenta na
medida em que desconsidera totalmente o outro.
Mas atendo-me mais à
consideração da violência como a aplicação de atos de força bruta, Laranja
Mecânica, do Kubrick, não parece entrar em nenhuma das searas que aparentemente
tocam à consideração da violência por Peckinpah. A violência em Kubrick não tem
razão de ser. Não é nem um ato de crueldade, pura e simplesmente, pois para
haver crueldade é preciso haver o motivo de causar dor - nem que seja o prazer
para quem o causa. Em Kubrick, como em filmes mais recentes, há uma ausência de
motivos, um por que não?, que parece reger a possibilidade e efetividade da
violência. Note-se, por exemplo, no filme de Kubrick, que ao estuprar a mulher
daquela casa no campo, Alex parece nem contar com o fato de sentir atração por
ela. É como se esse aspecto não fosse necessário, muito embora exista - tanto que
acontece. Alex a estupra simplesmente porque pode. Não há motivo aparente para
tal.
Já em Peckinpah
parece haver sempre um motivo - que em última instância se reduz à
sobrevivência. Mesmo em Meu Ódio será sua Herança - quanto mais em Sob o
domínio do medo, a sobrevivência parece ditar, em último grau, o motivo para
pegar em armas e usar de todos os recursos para aniquilar o outro. Nem que seja
o fato de essa sobrevivência estar mediada por valores - os homens em Meu Ódio
estão absolutamente convictos de que, segundo os seus valores, o recurso à
chacina é o último que podem aceitar. Como se eles, os vaqueiros, tivessem
estado a vida toda dominados por outros valores e só lhes restasse agora, que
nada têm a perder, o recurso ao tudo ou nada. Peckinpah, nas entrevistas desse
livro, desconsidera leituras politicamente corretas do que ele faz, isso é
certo. Para ele, o único recurso que ele comete é estilizar ad nauseam a
dramaticidade do ato violento. Para ele, a garota em Sob o domínio foi currada
porque não era uma mulher, propriamente dizendo. Era uma garota em busca de
algo que não sabia o que era, e pagou o preço. Para ele, generalizar, dizendo
que ele vê as mulheres como prontas para serem curradas, é estupidez. Mas ele
não muda de opinião. É assim que é aquela garota. Mulher mesmo seria outra
coisa.
Mudando da água para
o vinho - melhor seria dizer óleo, já que água e vinho se misturam: assistindo
Roma, por sua vez, lembro-me de que, pela primeira vez que a vi, nutria
simpatia considerável pela figura e ator que fazia Cícero. Havia algo de
filosófico nessa simpatia: pois Cícero deixou obra, e considerável, além de ter
sido um homem de ação política. Mas Cícero, agora vejo, passa uma fraqueza
inacreditável, em sua postura política, e depois, sendo assassinado, deixa
claro o destino dos fracos. Lembro-me também dos Tudors, que não consigo achar
aqui perto, e da figura de Cromwell, que, como todo aquele que não tem o poder
final, acaba se fudendo no fim. O ator, também aqui, me causa grande simpatia -
mas Cromwell era esperto, usava da linguagem para impor seu poder, mas no fundo
era fraco. O poder parece nessa medida advir da própria ausência de medida,
ausência de justificativa para o ato em si. Nisso deve advir a dificuldade de
se saber em que medida, em determinados casos, quem aplica de atitude mais
violenta realmente quer machucar, quer humilhar. Daí que os critérios acabam
sendo as condições externas ao ato, por ser impossível entrar na psiquê do
violento.
Irei rever o
Peckinpah que possuo aqui comigo. Mas desde já noto que, ao que parece, Kubrick
conseguiu tornar a violência algo mais do que estilo - característica hoje
dominante. Kubrick vai tão fundo na questão quanto eu há alguns anos, quando
descobri a característica por definição do mal: a ausência de motivo. Estuprar
pelo prazer não é maldade, em suma (embora seja moralmente reprovável e crime):
é pagar o preço da escolha. Já estuprar sem ter motivo nem prazer que conduza a
ação é outra coisa.
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