Pular para o conteúdo principal

Um amor (monólogo, a ser apresentado dia 26/8, em São Paulo)

Começo criando um quadro, uma figura, tirada a partir de uma foto.

Uma mulher de quase quarenta, aparentando menos, em pé numa escada rolante, sendo abraçada pelo lado direito e beijada na nuca por um homem com entradas de calvície vindo de trás. Ela sorri.

Uma realidade que não nos diz respeito. Mas que está para todo mundo ver.

Daí eu vou para um outro quadro, outra figura, não tirada de uma foto, mas de uma realidade, agora chapada porque passada.

Uma realidade de duas pessoas. Envolvidas numa relação de anos de desgaste. Em que ela mal sabe para onde ir - embora queira ir para algum lugar. Em que ele não consegue se desvencilhar do mundo em direção a algum lugar que seu coração parece divisar. Uma direção portanto que ele não tem coragem para abraçar. E que por isso precisa negociar. Fazem o que não sabem, os dois. Ela, sem saber o que quer. Ele, sabendo-o, em suas próprias profundezas, mas sem conseguir entender.

Agora vou para outro quadro, outra figura, tirada de uma realidade íntima, a dele, que ele não compartilha com ninguém.

Esse quadro envolve dor. A dor de ter abraçado uma atividade que não o quer. A dor de ter precisado se submeter a uma realidade que ele não aguenta. A dor de ter apostado todas suas fichas numa realidade que ele não consegue entender. A dor de ter sido obrigado a desistir de um sonho que ele mal conseguiu abraçar. Mas ele ficou calado. Não compartilhou essa sua dor. Não obrigou ninguém a carregá-la com ele - ele sempre se viu a todo momento sozinho. Dores de quem não queria dividir com ninguém.

Agora por fim ainda um outro quadro. Este, final.

Um homem sujeito à sua singela e solene realidade. Um homem sem ninguém a prestar contas. Um homem solto no espaço como o astronauta de 2001. Um homem com medo da Moira, do destino, mas completamente tomado pelo afã de fazer da vida o seu valor. Um homem que vê todos esses vários quadros com a liberdade e o peso de ter sido obrigado a pegar um caminho na vida. Um homem que sorri para si mesmo mas não consegue ainda sorrir para a vida. 


Há sorrisos que não são para nós.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm

(Em) Branco (de Patricia Kamis, dir. Roberto Alvim, Club Noir, 3as a 5as durante o mês de agosto)

Fui à estreia da segunda peça da leva de oito novos selecionados que o Alvim vai encenar municiado de sua leitura na noite anterior. Esperava ver algo relativamente tradicional e nutria um certo receio de déja vu. A atriz e os dois atores permanecem estáticos em quadrados iluminados por baixo. O caráter estático não se refere apenas ao corpo em contraponto com o rosto, mas também a este, mutável apenas (e repentinamente) por expressões fugazes. Os olhares permanecem fixos. O texto segue a ordem 1, 2, 3 (segundo o Alvim, emissores mas não sujeitos), que eu imaginava que iria entediar. As falas são ora fugazes ora propositalmente lentas e sua relação tem muito a ver com o tempo assumido em um e outro momento. Não irei entrar no âmago da peça. Nem irei reproduzir o que a própria autora, o dramaturgo Luciano Mazza e o próprio Alvim disseram no debate posterior a ela. Direi apenas que durante ela nossa sensibilidade é jogada de um lado a outro num contínuo aparentemente sem fim sem c