Eu havia assistido a
Laranja Mecânica há vários anos, mas o filme não havia me deixado nenhuma
grande impressão. Eu - creio - ainda não estava sensível o suficiente à fruição
de aspectos estéticos evidentes, além do que diversos questionamentos - sobre
violência, paternalismo, sexo, etc. - não estavam ao que parece muito
evidentes. Daí que não havia o que questionar porque o mundo me parecia
naturalizado - como se isso realmente (por isso refiro-me às questões levantadas
pelo filme) não fosse algo problemático ou problematizado. Sinto, em parte, o
mesmo ao rever filmes do Woody Allen - é como se neste caso eu não tivesse,
quando o vi pela primeira vez, a sensibilidade para a leveza dos diálogos e da
problemática social (as ironias, etc.) envolvidas.
Estou bem no começo
da fita. O que me pega, por enquanto, é o cuidado com o trato com a cor. Tudo
parece milimetricamente combinado, tal qual as cenas de antigravidade em 2001,
por exemplo. Parece haver um desenho de luz, em cada tomada, ou quase em cada
tomada, que privilegia uma sensação que fica evidente ao notarmos o que está,
em qualquer dos casos, envolvido. Na primeira tomada, na loja futurista de
leite, a brancura dominante assume uma pureza que bate de frente com a
licenciosidade envolvida, ao mesmo tempo que a reforça, pois afinal por que a
licenciosidade deveria assumir outra luz, outra cor? As cenas da briga entre
gangues resumem, como poucas que eu conheço - Peckinpah está nessa jogada -, a
força energética da violência explícita e implícita. Não há cenas de
meio-violência. Tudo é ultraviolento - como o próprio Alex classifica. As
cadeiras quebradas, as janelas destruídas, como que se espalham como jorros ao
redor dos envolvidos. Há um envolvimento atroz do sujeito com o objeto, ao
ponto de não conseguirmos distinguir claramente um do outro. Há também um
rastro cômico em diversos takes - como se fossem palhaços, o que não são.
Inútil tentar falar algo diferente da invasão que a gangue faz ao Home (Lar)
futurista, assim como da surra que o proprietário leva (com ângulos de câmera
definitivos) e do estupro que não é mostrado, mas por ser sugerido até mostra
mais para nós, para nosso interior, do que se ele fosse simplesmente
arregaçado.
São incontáveis
também os recursos gráficos, não diria inusitados, mas no mínimo ousados. Jesus
crucificado multiplicado em vários bonecos e em posição de dança, desenho de
mulher com as pernas abertas SEM APARECER o sexo, mas em que tudo leva até ele,
a cama com padronização à la Volpi que depois se transforma num cobertor
vermelho tradicional e sensual, tudo parece dizer algo, dizer que Alex não é
qualquer um, não mora como qualquer um, que tem tudo, algo que de outra forma
outro diretor diria de forma mais explícita. Aqui é a cor que cumpre essa
função. Um outro detalhe importante é o linguajar de Alex e gangue, que usam de
palavras inexistentes ou quase inexistentes, que expressam uma riqueza estúpida
por não dizer nada realmente de diferente mas por passar a impressão de certa erudição
- algo no jeito de fala lembra-me Laclos, com as expressões aparentemente
polidas escondendo intenções de subjugação por detrás de si. Não é de desprezar
o fato de que as falas são, em grande parte, em off, como um diário de detento
que ainda não o é. Como um romance de formação do Goethe, quase isso. Incrível
mesmo é só agora deter-me nisso. É o custo de se avançar em referências
culturais variadas: eu não tinha ninguém para me ensinar isso, e agora,
trilhando meu próprio caminho, percebo as coisas sem porém me render
necessariamente a elas. Esse momento de indecisão é importante, suponho.
Decidir-se por um mau gosto é para qualquer um. Eu ainda não me decidi. Não
tenho instrumentos suficientes para navegar sozinho, mas tenho a intenção e
vejo claramente como os outros grandes o fazem. Terei tempo? Não sei.
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