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Referências de realidade

Há muitas vantagens em fazer bons cursos de humanas, ciências ou não. Uma delas, bem evidente, é a capacidade de poder navegar na mania que muitos do ramo têm de usar referências que, lá atrás, fazem jus a questões de poder, relevantes ou não.
Mas há também uma desvantagem, não tão evidente. Esta é, em poucas palavras, a perda de originalidade NA PULSÃO de se escolher rumo próprio na construção de UNIVERSOS EXPRESSIVOS.
Explico. Lendo sobre a trajetória de Almodóvar, num livro que ainda irei resenhar - eu já devia tê-lo feito -, fiquei sabendo que ele começou filmando em super-8, quando era funcionário da telefônica, uma sociedade da qual fazia parte que expressava as contradições de uma Espanha sob Franco e prestes a se libertar, criativamente falando, dessa estreiteza mental do catolicismo adstringente de uma Opus Dei, por exemplo. Almodóvar não tinha, como nunca teve, educação formal em cinema. Ele simplesmente tinha questionamentos que soube usar como catalisadores por meio de suas leituras simplórias - ou menos simplórias -, e navegou a partir disso, sozinho, como criador individual, arrebanhando apoios desses que sempre o levaram para cima - porque ele era ELES.
No caso de um Bergman, não há muito disso. Bergman teve educação formal e começou pela via do teatro. Suas referências cinematográficas eram as de uma classe bem instruída europeia, e ele soube transformar questões em imagens, que decupou de tal forma a criarem um certo estilo, que creio irá se manter por muito tempo. Menos ainda há do que aconteceu com Almodóvar com Woody Allen. Este é um fruto do meio novaiorquino. Ele pega para si tudo o que o marca nesse mundinho classe média esclarecida num Estados Unidos dominante, para o qual mal existe outro tipo de mundo. Woody Allen não é original: original é o ambiente em que ele vive, original é o trato que ele dá a tramas que inventa para causar certo efeito, mas graficamente ele não inventa nada realmente original. Com Kubrick é diferente: ele cria mundos. Mas nem sempre: pois em Nascido para matar e em De olhos bem fechados ele como que se rende ao seu redor (embora ele morasse quase sempre na Inglaterra - daí que a NY do filme com o casal Cruise era inventada, realmente inventada). É como se o perfeccionismo e dificuldade de encontrar boas histórias limitasse Kubrick à criação de mundos apenas em suas primeiras fitas. Depois ele como que acabou se acomodando.

Tudo para dizer que saber demais, enxergar demais, às vezes atrapalha. Como se para criar realmente fosse antes de mais nada saber se distanciar, saber recusar, saber jogar fora, referências, mais do que simplesmente usar as que nos rodeiam. Daí o motivo por eu, quando ando por aí, preferir andar olhando para o céu - tentando achar uma Terra mais minha. Ou tentando descobrir no detalhe dos rostos e dos lixos circundantes algo que possa me fazer sair de mim sem que eu o queira ou mesmo consiga.

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