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Pedras d'Água - bloco de notas de uma atriz do Odin Teatret, de Julia Varley (Teatro Caleidoscópio, Dulcina Editora)

Minhas andanças em busca de referências outras em trabalhos de grupo levaram-me a cair de boca nos textos escritos por Eugenio Barba em seu Odin Teatret, hoje com sede na Dinamarca (onde está a Mafe Vomero, estes dias, fazendo uma oficina). Mas no livro já citado - Teatro - Solidão, Ofício, Revolta - Barba não abre espaço quase nenhum a falar de prática, de métodos, do trabalho em suma desenvolvido por seu teatro. Claro, para quem, como eu, busca referências que possam ajudá-lo a conduzir suas próprias práticas, o livro de Barba parece mais uma simples tomada de posição ideológica, e por isso não parece ajudar muito.
Foi com o afã de entender algo do que é desenvolvido lá naquele grupo que comprei este livro de uma das atrizes do Odin. Mas a primeira impressão, após comprá-lo, não foi definitivamente boa. Pois pareceu-me o livro - ao menos no começo - uma simples compilação de rememorações de trabalhos feitos com o Odin e não especificamente de mostrar como o trabalho dos caras se desenvolve.
Com essa impressão acabei deixando o livro um pouco de lado. Mas, como sempre acontece, acabei desenvolvendo reflexões próprias que por coincidência levaram-me de volta ao livro do Barba e agora ao da Varley. Essas reflexões eu pus num artigo que publiquei hoje mesmo. No caso, as posições de Barba levaram-me a entender o lugar próprio do teatro enquanto arte; já as leituras ao acaso no livro da atriz do Odin levaram-me a descobrir que não é só nos meus tratos com minhas atrizes que realmente a gente enfrenta dilemas que podem afetar - e normalmente afetam - o trabalho em si.

Farei uma pequena digressão. Num determinado ponto do livro, Varley explica como se deu sua entrada nas atividades do Odin, e como ela sentia que não era propriamente aceita pelo próprio Barba. Insistindo em desenvolver um trabalho com o grupo, Varley acabou, contudo, e pouco a pouco, criando um liame todo especial com o diretor. Um liame que ocorria numa relação dúbia, não tanto de mestre-discípulo, mas mais de companheiros de jornada. Varley revela como diversos atores envolvidos com o grupo encaravam as disposições de Barba, e como, por haver conseguido navegar nos desafios propostos por ele, ela acabou achando seu próprio caminho. Pois acredito nisso: que no teatro cada um deve achar o seu caminho. Não consigo mais imaginar o teatro como arte sendo conduzido a ferro e fogo por vontades férreas que de alguma forma acabam achatando as contribuições individuais dos atores e outros envolvidos. Explico dizendo, por exemplo, que no caso da cia. da qual participei - o Teatro Cemitério, dirigido pelo Marião - sempre houve um caminho aberto por parte da direção - no caso, o trabalho do ator em si. O registro era claro - ditado pelo Marião -, assim como as marcações, e tudo o mais. Mas o Marião deixa todo mundo viajar por si só em sua própria viagem. Ele não dita excessivamente o que quer - ele deixa uma liberdade (há quem queira mais liberdade, claro). Mas, e com companhias em que essa liberdade é realmente tolhida? Bom, creio que realmente isso não me interesse muito. Mas entendo, agora, após ler este livrinho, que pode ser que em determinados casos a liberdade não esteja sendo realmente tolhida - mas que tenha sido instaurada uma outra e nova relação com o Outro - e isso realmente me interessa. 

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