César Ribeiro, do
grupo Garagem 21, me disse no começo do ano que ele iria, com o seu grupo,
ensaiar Esperando Godot, do Beckett. Eu nunca havia participado de ensaios
desse clássico e me interessei. Ele questionou por que eu queria assistir, se
havia metido tanto o pau numa outra peça do grupo. Eu lhe disse que eu quero
aprender, seja lá qual for a linguagem do grupo. Ele iria topar e permitir que
várias outras pessoas assistissem os ensaios, que passaram a ocorrer na casa
dele, perto da estação São Joaquim. Eu fui algumas vezes, sozinho ou com amigas
do meu grupo.
Revendo alguns de
meus posts, reparei agora que já havia escrito algo sobre o processo. Algo que
envolvia, à época, leituras sobre parâmetros a levar em conta para a linguagem
e pressupostos para o trabalho do grupo, e, de minha parte, algumas
"viagens" sobre artes plásticas, também. Passou-se muito na minha
vida desde então, e deixei de dar tanta atenção a estas últimas (artes
plásticas), dedicando bastante esforço a entender o teatro que vivencio e
aquele no qual passei a acreditar (por passos próprios e de empréstimo a
reflexões alheias). De lá para cá, minhas intervenções nos ensaios de Godot
passaram a deixar de ser do âmbito da linguagem e do real para aterem-se, sem
prejuízo (espero) da pertinência (palavra muito cara ao Mauro Schames, um dos
atores), aos momentos da encenação e à busca do ponto certo, em termos de
tempo, espaço e clima para as atuações, no que diz respeito aos objetivos
propostos desde o começo pelo César.
Calhou que haja
ficado algo para trás e outras coisas pelo caminho, sobre o que prefiro
refletir aqui por escrito. Neste caso, reflito com o intuito de esclarecer,
para mim, em que consiste uma concepção cênica e de linguagem teatral, e em que
medida considero que esta concepção deva prevalecer sobre o que irá ser
mostrado na hora do espetáculo.
No palco, há sempre
atores e atuações, espaço, tempo e outros recursos (luz, som, etc.). Há quem, a
esse respeito, diga e repise que teatro é a arte do ator, sendo o texto o
parâmetro central a definir a ação e a linguagem de encenação, uma escolha a
cargo do grupo como um todo ou do diretor em específico. Desde que, em meados
do século XIX, a luz veio à luz, e com ela recursos até então inimagináveis, a
cenografia também passou a ocupar um espaço de maior destaque, e, com o
desenvolvimento de linguagem derivado da literatura e das artes cênicas, o REAL
passou a ser questionado. Surgiram encenações simbolistas, românticas,
expressionistas, naturalistas, realistas, oníricas, e muitas mais. Surgiram
revolucionários que deixaram obras incompletas - Craig, Meyerhold, Vakhtangov,
Kantor, Brecht - e outros que preferiram se concentrar no ator e em sua arte -
Stanislavski, Strassberg, Adler, Grotowski, Meisner, Suzuki e orientais -,
deixando aparentemente pouco para quem veio depois. Não por isso o teatro
parou: ele continuou inovando e desafiando, de diversas formas, algumas delas
virando método e criando tendências que com o tempo passaram a ser superadas,
retomadas, superadas, retomadas, etc. O teatro no Brasil passou, desde os 80,
por uma fase do teatro de grupo, e muitas fontes de inspiração passaram a dar
guarida a grupos dispersos por todas as grandes urbes, fazendo uso de textos
nacionais ou universais, abordando-os de formas as mais diversas.
A encenação de
clássicos como Esperando Godot exige, desse ponto de vista, uma posição quanto
à linguagem corporal, de voz e cênica a dar fundamento à relação entre os personagens
a partir de trabalhos consistentes por parte dos atores. O grupo Garagem 21, do
César, foge do realismo completamente. Foram necessárias algumas sessões de
leitura e de ensaios para extirpar todo e qualquer realismo das posturas dos
atores e de suas formas de atuação. Leituras as mais diversas visam, por outro
lado, enquadrar o texto, escrito nos anos 50, pós-segunda grande guerra, no
contexto da humanidade atual, com o ser humano sujeito a diversas quebras
internas, sociais e psicológicas, que fazem leituras simplesmente realistas
perderem a força, ou, para outros, que não discutem o realismo, darem margem a
posições extremas - um realismo extremado para causar consciência no
espectador. O César, pelo que percebo, não busca causar uma consciência
externa, uma posição refletida a respeito do que se vê. O trabalho é quase
sinestésico, percebo, para fazer quem vê o espetáculo sentir o drama sem recair
necessariamente em comiseração ou reflexões que não levam muito longe por
estarem deslocadas neste momento histórico pós-histórico. O que não significa,
pelo que percebo, optar necessariamente por uma abordagem pós-dramática. O
César opta por linguagens estritas e exatas inspiradas no que, segundo ele, há
de bom num Kantor e num Suzuki para conduzir o espectador a um ambiente
pós-europeizante e quase anti-histórico.
Para estudiosos -
considero-me um - do teatro atual - embora pouca ênfase realmente eu dê àquilo
que é efetivamente feito, concentrando-me mais naquilo que busco realizar com
base numa intuição sensível extremamente pessoal -, a recusa a realismos
variados supõe a opção por universos que se contraponham a uma simples
descrição de fatos. Há sempre, em casos como o meu, a ênfase na interpretação.
Minha interpretação, creio eu, baseie-se na descoberta da quebra do sofrimento,
na identificação, em outras palavras, de questões que, nos textos e nos atores,
conduzem-nos a todos a uma perda de consciência. Quando, de tanto entrarmos na
crise do texto e do seu sentido ou de sua ausência de sentido, percebemos,
quase por movimentos incontroláveis, algo tomando conta da interpretação,
conduzindo-a ao paroxismo do personagem NO ator e NA atriz. No caso do teatro
da Garagem 21, essa ênfase no ponto da crise não existe. Existe, por outro
lado, uma reflexão incessante sobre a situação histórica e sociológica atual e
na descoberta de linguagens expressivas que possam tornar essas interpretações
visíveis por meio do texto teatral. No teatro que faço, o texto é pretexto. Não
me interessa em última instância o que o texto diz ou pode querer dizer por si
só. Interessa o que ele pode revelar na encenação e no ator. No caso do César,
o texto não é pretexto, mas ferramenta por meio de cujo domínio com base em
referências expressivas várias pode-se reinterpretar o meio circundante de
forma a esclarecê-lo para quem assiste sem que com isso necessariamente se
recaia em reflexões vãs. Torna-se tornar tudo tão real quanto o realismo sem os
aspectos negativos deste último, que costuma desbancar em romantismo ou mesmo
num pessimismo rasteiro no qual pouco pode parecer restar.
Foto: Kenn Yokoi
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