Não gosto TANTO de
Bergman para dizer que é ele quem mais me influencia nesse afã de descobrir o
rosto.
Fato é que, por ser
uma pessoa com dificuldade imensa de decifrar aquilo que me é dito pelo rosto
do outro, ou de acreditar realmente nisso que vejo, ou de realmente me
conformar com isso, o rosto é o meu foco. Tanto que nos trabalhos que
desenvolvo com meu grupo eu geralmente me limito a tentar sentir algo por meio
do rosto do outro. Quando vejo esse algo QUE NO FUNDO PODE QUERER DIZER
QUALQUER COISA eu me animo e digo que finalmente tornei essa atriz/ator alguém
expressivo PARA MIM.
Recentemente eu
escrevi um texto - que está neste e noutros blogs - comentando o jeito do Cesar
Ribeiro definir seu teatro e dirigir em contraposição a isso que eu busco. Fiz
um apanhado do que existe de mais relevante nas conquistas do teatro desde o final
do século XIX e fiz umas provocações. Que ele, Cesar, retrucou transcrevendo um
texto sobre o que a Mouchkine fala sobre seu Theatre du Soleil e algumas
posições com respeito à questão do movimento. Ela diz que o ator ocidental,
quando lhe é pedido que páre, ele interpreta a posição apenas fisicamente. No
caso da diretora, a questão é trabalhar o movimento interior, parar também
interiormente.
No meu caso,
interessa-me o movimento que no fundo quase não existe mas que mais importa - e
que não cessa. Esse movimento a gente vê algumas vezes quando deixamos o
interlocutor vazio de conteúdo, sem que ele se motive a dizer qualquer coisa, e
percebemos que ele começa a dialogar consigo mesmo, sem querer e de forma
aparentemente inconsciente. Nesse momento em especial ele acaba mostrando algo,
no rosto, que é tão importante para si mesmo que não consegue retrair. Nesse
momento o interlocutor SE TRAI, mostrando realmente o que está se passando com
ele. Uma amiga próxima mostra esse gestos, que não são bem gestos, se me
entendem, a roldão e eu lhe digo que vejo algo que ela não consegue enxergar -
e que por isso sinto-a tão próxima de mim.
Recentemente, falei
com uma atriz-dramaturga, explicando o que faço com meu grupo e convidando-a a
ver o que fazemos - e a entrar no grupo. Não nos víamos há vários anos, e no
primeiro vislumbre do seu rosto eu vi uma tristeza e decepção incomensuráveis.
Conversamos, e num determinado momento ela pareceu se transmutar. O seu rosto
foi se abrindo e pegou nas minhas mãos, procurando-as avida mas contidamente.
Conversamos várias horas. Senti que não passara um dia desde que a vira pela
última vez. Só não podia dizer isso com toda convicção porque seu sofrimento
mostrou-se de vários anos, dominando os seus dias. Essa atriz mostrou-se aberta
ao mundo, sem tanto medo quanto o normal, quando conversou comigo. E pude
perceber muitas facetas dolorosas nisso que ela é, atualmente. O PROBLEMA é que
normalmente, quando a pessoa confia, começa a falar. A falar sem parar. A achar
que você está ao seu dispor. Não é nada disso. Eu peço gentilmente ou às vezes
pouco gentilmente que não diga nada. Que guarde para si seus dilemas, mas que
os introjete em si, os trabalhe e se quiser que pegue na minha mão, se assim se
sente melhor. Mas que não fale. Eu lhe digo, quero ver esse seu sofrimento, seu
paradoxo, sua contradição, na cena, especificamente na cena.
Voltando à questão do
gesto, o filme O Homem das Multidões, de Cao Guimarães e Marcelo Gomes, vai
especificamente nessa direção sobre a qual aqui eu discorro. Há planos muito
demorados no filme, e em parte ajudado pelo enquadramento quadrado, o rosto dos
personagens expressa caminhos, nesses planos, que levam-nos bem longe, que
trabalham as questões não de forma unilateral ou linear, mas que, ao contrário,
mostram que há ali muito mais do que imaginamos. Isso, essa questão do humano,
é que me faz avaliar a imagem como extremamente atraente e criteriosa. Não é
qualquer plano que consegue atribuir isso à imagem. Preciso também falar do
Bernardet, que faz um papel importante nesse filme. Bernardet está morto. Mas
por trás dessa morte que ele vive ele está vivo. E tem esperança. Uma
desesperança-esperança. Estranho dizer isso, mas o vemos no seu rosto. É lindo.
Demais dizer que por
lindo eu quase somente vejo ISSO.
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