Pular para o conteúdo principal

E.M.Cioran, Palestra Sobre Nada (adaptação, direção e interpretação: Euler Santi)

Ok. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, não sou nem posso ser isento. Cioran é uma presença fundamental em minha vida. Fiquei sabendo desta peça, do Euler, pela via do Marião, que comentou a respeito no face. O próprio Euler foi lá e comentou a realização da peça. Eu apenas não sabia que iria ser o próprio Euler a interpretá-lo.


Como disse a um espectador antes do espetáculo, eu estava receoso. Não conseguia deixar de me remoer a curiosidade que seria colocar o próprio Cioran no palco, para interpretar seus escritos. Pois é isso o que é a peça: uma adaptação de seus escritos, tratados de forma cênica. O que não é pouco.

Antes de mais nada, um pequeno esclarecimento. Cioran é tão importante em minha vida porque ele me reensinou a rir. Sim, pois à época, fazendo filosofia, eu levava o mundo a sério demais. Indicado pelo Renatinho, grande amigo de todo sempre, eu reaprendi a sorrir e a rir. Impossível não rir lendo muito do que escreve. Mas o que ele escreve é muitas vezes sério demais para ser dito de forma imprópria. Daí que ele também iria se tornar um dos maiores prosadores franceses contemporâneos. Ou melhor, romeno, mas sem ser repatriado um escritor da língua francesa, essa, tão difícil.

De forma inusitada, a peça começa com um homem pelado, com um monitor onde fica o saco, que filma os espectadores, à entrada da sala, e que dá beijinhos na tela. Sei lá. Pensar o quê.

Mas já na sala a história é outra. Cioran, ou o Euler, está sentado numa cadeira, cabisbaixo, pensativo, esperando que todos se sentem, e ouve-se Bach. Forte, majestoso.

Cioran fala. Fala e fala. E tira sorrisos. E tira risos. E não se irrita demais. Fala de forma incisiva. Levanta-se. Pega um cigarro, que não acende. E continua suas diatribes contra tudo. Contra a vida. A sociedade. A intelectualidade. A história. Contra Deus. Contra tudo. É fácil identificar que é Cioran mesmo a falar. Rio. Lembro de quando isso aconteceu pela primeira vez. Da satisfação de ver alguém vivo e forte a trocar ideia com aquele que não sucumbiu ao pensamento (ainda).

O texto de Euler é profundo. Abertamente retirado do próprio Cioran, Euler usa e abusa dos jogos de linguagem que povoam todo o universo cioraniano. Jogos que não são propriamente de linguagem. Na verdade, Cioran coloca palavras em determinados lugares e com isso cria efeitos instantâneos inusitados. As diatribes são identificadas por muitos, que riem. Impossível não rir. Há algo de histrionicamente verdadeiro em tudo o que ouvimos.

Ao final, Cioran pede fogo, a luz se apaga e ele sai.

Saio com uma impressão terrivelmente positiva do que vejo. Sinto-me em companhia do mesmo amigo cujo túmulo visitei duas vezes em Montparnasse - e depois o de Beckett, outro grande amigo. (Nota: não os conheci, é claro. São meus amigos como Rousseau, Baudelaire e Kant são também meus amigos, meus grandes amigos. Além de outros) Surpreendo-me com a integridade e força do que vejo. Cioran está lá. O tratamento cênico do texto não é nada histriônico, embora exista uma provocação. O histrionismo no fundo está no texto. Cioran, ou o Euler, não se deixa levar pela raiva contra o mundo - embora haja uma raiva latente na revolta que ele expressa em textos e mesmo pessoalmente. Para ele, a solução é oferecida por palavras, essas mesmas palavras que tanto aporrinham. (O Euler esqueceu-se de citar a relação de Cioran com a palavra, algo fundamental, em especial a oposição entre romeno e francês. Tudo bem. O mais importante está lá.)

Dá vontade de rever. Procurem. É uma diversão intelectual e tanto. Aposto que, se não leram nada do romeno, após a peça ficarão com vontade de ler.

Comentários

eulernov disse…
Euler não esqueceu da ligação de Cioran com a palavra. faltaram-lhe uns dez minutos (para meu prazer pessoal uns 50 minutos) de espaço na palestra.

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm

4.48 Psicose (peça de Sarah Kane, tradução de Laerte Mello)

Há realmente algo de muito estranho e forte nesta última peça da Sarah Kane. E não é porque ela se matou em seguida, aos 28 anos. O assunto é claro desde o começo: uma depressão mortal. É como se fosse um testamento. Muitos lados da questão são expostos de forma esparsa - não sei se todos nem se isso afinal é possível -, e ao final da leitura a gente fica com um sabor amargo na boca. Dá vontade de reler, muito embora passe o desejo de decifrar. Isto torna-se secundário, aqui. Há algo que permanece, e creio que isso se deva à qualidade do que é feito e à integridade do que é dito. Pego por exemplo, já na primeira página: "corpo (...) contém uma verdade que ninguém nunca fala". É óbvio do que se trata: da extrapolação do fisiológico, de uma lógica de que por mais que se tente diagnosticar "nunca se fala". Abre-se uma porta à compreensão disso que não sabemos muito bem o que é. A força de "Lembre-se da luz e acredite na luz/ Um instante de claridade antes da

(Em) Branco (de Patricia Kamis, dir. Roberto Alvim, Club Noir, 3as a 5as durante o mês de agosto)

Fui à estreia da segunda peça da leva de oito novos selecionados que o Alvim vai encenar municiado de sua leitura na noite anterior. Esperava ver algo relativamente tradicional e nutria um certo receio de déja vu. A atriz e os dois atores permanecem estáticos em quadrados iluminados por baixo. O caráter estático não se refere apenas ao corpo em contraponto com o rosto, mas também a este, mutável apenas (e repentinamente) por expressões fugazes. Os olhares permanecem fixos. O texto segue a ordem 1, 2, 3 (segundo o Alvim, emissores mas não sujeitos), que eu imaginava que iria entediar. As falas são ora fugazes ora propositalmente lentas e sua relação tem muito a ver com o tempo assumido em um e outro momento. Não irei entrar no âmago da peça. Nem irei reproduzir o que a própria autora, o dramaturgo Luciano Mazza e o próprio Alvim disseram no debate posterior a ela. Direi apenas que durante ela nossa sensibilidade é jogada de um lado a outro num contínuo aparentemente sem fim sem c