Pular para o conteúdo principal

Uma conexão: A Máquina de Dar Certo e Jan Fabre

Estou numa sinuca de bico.
Vi, no sábado, "A Máquina de Dar Certo", da Cia. Bruta de Arte, no Teatro Martins Penna, na Penha.
Eu já deveria ter escrito a respeito mas a encenação levantou uma bola que não tive tempo ainda de aferir com precisão. A bola é uma conexão entre essa peça e The Power of  Theatrical Madness, de Jan Fabre, que vi há alguns meses no Sesc Pinheiros. Uma bola que pende para o nosso lado.
Eu me lembro - li o que escrevi - que saí da peça do Fabre dividido quanto a se aquilo era teatro ou mesmo quanto àquilo que eles passaram, ou tentaram passar. Naquela peça, atores, todos muito belos, repetiam datas, relacionavam-se a respeito delas, matavam rãs, faziam de cachorro, encenavam um corte de cabeça, corriam até não mais poder, etc.
Nesta peça, ou seja, em A Máquina, personagens com números são condicionados a agradar um poder que os mantêm presos ao palco, que não dá as caras e que não os deixa em paz. Só isso.
Os atores têm perfis diferenciados. Andam de forma particular. Mexem-se de forma particular. São pessoas.
A peça gira em torno desse condicionamento. Há desde imitação de cantorias, enchimento de balão, coceiras intermináveis, diversos recursos usados pelos personagens para representarem no palco. O poder que os domina define seus desempenhos e os orienta caso caiam em comportamentos indesejáveis. Surgem diversas tentativas de escapar desse poder, mas em vão.
A peça, como o próprio programa diz, trata do behaviorismo. Ou seja, do condicionamento de comportamentos. A Máquina, no caso, é um experimento que se propõe tirar o melhor desempenho de qualquer ser que a ela seja sujeito.
Saí satisfeito.
Mas um ponto eu gostaria de destacar, ainda na descrição: houve um momento, em que um personagem alto e gordo reproduz a ordem de luzes no chão, em que ele se perde. E começa a girar em falso. É um drama real. Choro. Por pouco não choro para valer - embora eu estivesse na primeira fileira e ninguém fosse ver. Toda a injustiça do capitalismo avançado e da submissão dos seres humanos a poderes arbitrários veio à tona para mim. Foi lírico.
Agora, o contraponto.
Tanto na peça do Fabre como em A Máquina, os personagens não são exatamente personagens. Cada um deles tem cara, tem personalidade, comporta-se como a pessoa que o torna real. Em ambas peças há um poder externo que lhes "diz" o que fazer. Em Fabre, esse poder não aparece, mas sentimo-lo real. Eles, os personagens, não são livres. Representam papéis que os subjugam de muitas formas.
Mas na peça do Fabre a mensagem escapa. Não parece tocar. Não parece nos levar a pensar ou repensar. Ela permanece externa a nós.
Em A Máquina, não. A mensagem, que existe, é compartilhada conosco pelos personagens. Sentimo-nos irmanados a eles.
Vão ver. Fica até este fim de semana (30 e 31 de março).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm...

4.48 Psicose (peça de Sarah Kane, tradução de Laerte Mello)

Há realmente algo de muito estranho e forte nesta última peça da Sarah Kane. E não é porque ela se matou em seguida, aos 28 anos. O assunto é claro desde o começo: uma depressão mortal. É como se fosse um testamento. Muitos lados da questão são expostos de forma esparsa - não sei se todos nem se isso afinal é possível -, e ao final da leitura a gente fica com um sabor amargo na boca. Dá vontade de reler, muito embora passe o desejo de decifrar. Isto torna-se secundário, aqui. Há algo que permanece, e creio que isso se deva à qualidade do que é feito e à integridade do que é dito. Pego por exemplo, já na primeira página: "corpo (...) contém uma verdade que ninguém nunca fala". É óbvio do que se trata: da extrapolação do fisiológico, de uma lógica de que por mais que se tente diagnosticar "nunca se fala". Abre-se uma porta à compreensão disso que não sabemos muito bem o que é. A força de "Lembre-se da luz e acredite na luz/ Um instante de claridade antes da ...

algo sobre wilson e kantor

difícil não se sentir provocado ao ler e refletir algo sobre o legado de bob wilson. digo ler e refletir porque nunca vi nada DELE. e aquilo que tem no youtube, embora bonitinho, deixa demais a desejar, após ter lido o livro do galizia (os processos criativos de robert wilson). o fato é que ele, assim como o kantor, deixam-me a impressão de não, nunca ter assistido a nada similar àquilo que eles há tempos já fizeram. como sentir um déja vu face um espetáculo em que nada acontece, e em que os vivos mais parecem mortos, e os mortos (bonecos) como que expressam a vida (kantor)? (se é que eu entendi bem). dele, do kantor, a gente acha algo mais convincente no youtube. mas do wilson, nada. ou muito pouco. bob wilson convenceu-me por exemplo de que não precisamos seguir a rota dos clássicos - e por clássicos me refiro a todos esses que vemos citados aqui e acolá, por gente culta ou nem tanto, como referidos à arte contemporânea. não, realmente não preciso - mas posso querer - ler sobre o fut...