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A Moratória (de: Jorge Andrade, pelo Grupo Tapa, direção Eduardo Tolentino de Araújo)

Fiquei sabendo da montagem do clássico de Jorge Andrade pelo Estadão. Quase fui à prévia que eles deram no Itaú Cultural, mas iria ficar para a última apresentação. Aconteceu no Viga.


Lembro-me de haver lido o texto há vários anos. Na época, ele me deixou uma forte impressão. Não é fácil lidar com a gravidade da situação dessa família, envolvida face à decadência das fazendas de café, e, ainda mais forte, a um correspondente imaginário em absoluta derrisão. É patente para nós esse sentimento de inutilidade e completo desmembramento por parte de quem foi pego por um passado fortemente arraigado e que não conseguiu acompanhar o tempo, a história, a vida enfim.

A trama é relativamente simples: o pai (cujo nome me escapa, que coisa) foi fazendeiro de café e espera a decisão judicial quanto àquilo que deverá ser feito de sua antiga fazenda, imersa em dívidas. Ele é ladeado pela mulher submissa, pela filha realista (a única que trabalha para ganhar algum dinheiro de forma constante), pelo filho bêbado e impossível de ser submetido à lide do trabalho braçal e por parentes que vêem a decadência da família de camarote. A filha fica noiva do filho de antigo rival do pai e isso cria outra crise. Surge a moratória, o casal leva 10 anos de perdão mas ao final perdem a fazenda. É isso.

Mas como em toda grande peça o thriller pouco importa. Importa é acompanhar o desenrolar dessa crise anunciada e entrar no universo desses personagens perdidos em sua incomensurabilidade - sim, eu disse isso mesmo - pela sua própria inaptidão com o tempo. Com esse tempo que corrói e que os leva a insistir numa vida que não existe mais.

A peça já faz parte do cânone brasileiro e isso pode fazer crer que ela seja chata. Não é verdade. Ela é ágil e a encenação do Tapa e dos atores não nos permite perder nada do texto nem do espetáculo. Longa - 2 horas -, a peça conseguiu que eu me envolvesse a ponto de perder o tempo. Mas fiquei com uma baita dor de cabeça também. A peça não deve voltar logo. Mas, caso volte, recomendo. Mas não é diversão propriamente dita - é teatro de qualidade. E, caras, o José Carlos Machado - o pai -, caralho, arrasa mesmo.

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