Pular para o conteúdo principal

Sonata a Kreutzer, de Leon Tolstói (dramaturgia: Cássio Pires, direção Marcello Airoldi)

Fui convidado pelo Cássio a assistir a peça por motivos estranhos a ela. Deu-se no Sesc Pinheiros. Baseada no original de Tolstói, Sona a Kreutzer narra, em poucas palavras, o assassinato da própria esposa pelo protagonista, sem contudo se restringir a ele: narra-se o início, interlúdio e epílogo de casamento aparentemente feliz mas intima e inevitavelmente condenado ao fracasso.


Vemos a trama sendo narrada em primeira pessoa, mas por dois atores, sob o formato de uma sonata - a sonata do título é de Beethoven. O tom da narrativa é tal qual o de um diário ou da reconstrução de um crime. O protagonista, do qual não sabemos o nome, explica primeiro como é que ele narra suas relações com a instituição casamento, sempre contudo cético em relação ao sexo oposto. Mostra então como ele entrou, por que, e como se deixou enlevar pela sociedade rumo à tragédia anunciada. Um casamento feliz com 5 rebentos? Como assim? Percebemos a artificialidade do gesto, o papel da sociedade em conduzir a tragédia passo a passo, a gradativa posição mútua de desconfiança, raiva, indiferença e ódio.

Tudo passa se conduzir ao assassinato quando aparece um violinista de talento que passa a se relacionar com a esposa de forma inaceitável para o marido, o protagonista, dominado por um ciúme difícil de aquilatar, dado seu ódio gradativo pela esposa que apesar de tudo, da raiva excessiva mas contida, tanto almeja. Tudo é um sentimento de posse aceito pela sociedade mas que ele nota ser fraco dada a vontade dessa que deveria a ele se sujeitar. Com idas e vindas e encenação de discussões, o assassinato ocorre tal qual o da velha por Raskolnikov, de Crime e Castigo. A mão que efetua a morte por meio de punhal conduz-se como que por vontade própria. Não é preciso que ela apareça. A tal ponto as condições da tragédia aparecem que o corpo assassinado mostrar-se-ia quase excessivo se realmente aparecesse.

A sociedade absolve o marido. E ele pede desculpas. A quem?

Por diversos momentos, os atores chegam a hesitar em seus textos, o que revela a encenação de forma infeliz, mas no geral conseguimos facilmente ser conduzidos pela trama. A direção de Airoldi é certeira e leve. O que na mão de outros poderia dar uma encenação burocrática aqui nos conduz de leve sem sentirmos o tempo passar. O texto do Cássio, como ele mesmo diz, segue ipsis litteris o texto de Tolstói e deixa claro o anacronismo da trama. Me divirto.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm

(Em) Branco (de Patricia Kamis, dir. Roberto Alvim, Club Noir, 3as a 5as durante o mês de agosto)

Fui à estreia da segunda peça da leva de oito novos selecionados que o Alvim vai encenar municiado de sua leitura na noite anterior. Esperava ver algo relativamente tradicional e nutria um certo receio de déja vu. A atriz e os dois atores permanecem estáticos em quadrados iluminados por baixo. O caráter estático não se refere apenas ao corpo em contraponto com o rosto, mas também a este, mutável apenas (e repentinamente) por expressões fugazes. Os olhares permanecem fixos. O texto segue a ordem 1, 2, 3 (segundo o Alvim, emissores mas não sujeitos), que eu imaginava que iria entediar. As falas são ora fugazes ora propositalmente lentas e sua relação tem muito a ver com o tempo assumido em um e outro momento. Não irei entrar no âmago da peça. Nem irei reproduzir o que a própria autora, o dramaturgo Luciano Mazza e o próprio Alvim disseram no debate posterior a ela. Direi apenas que durante ela nossa sensibilidade é jogada de um lado a outro num contínuo aparentemente sem fim sem c