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No (dir. Pedro Larraín) (baseado em peça de Skármeta)


Antes, um esclarecimento.
Nasci no Chile, vivi 9 anos lá e assisti o golpe e pós-golpe. Viajei a Santiago em 1988, como chileno, numa caravana pelos direitos humanos que havia sido (não sabíamos disso então) organizada pelo Partido Comunista chileno. A caravana não passou, mas eu (que me desliguei dela em Mendoza), sim. Mas eles nos procuraram em Santiago (no meu caso, eles não deviam ter o meu nome). Fui a uma manifestação pelo plebiscito (pelo No) e vi como tudo se desenrolou, jatos de água, etc. Não fiquei na linha de frente. Voltei antes do dia do plebiscito, eu precisava voltar e não tinha título, por isso não podia votar.
Essa é a minha história relativa ao Chile e ao plebiscito.
Desde "Machuca" eu não me reaproximava desse meu passado. Passei por toda a projeção nervoso (em parte, confesso, porque queria mijar). Em diversos momentos, ri de nervoso e quase me vi na tela. Ainda hoje pondero em que medida a ditadura foi e ainda é importante EM mim. Digo "em mim" porque suponho, por experiência própria, que as influências mais importantes se dêem de forma inconsciente. Tenho absoluta atração por armas, por exemplo (derivada de eu haver assistido os aviões jogando bombas? de haver presenciado meu tio dar ao meu pai uma arma?). Tenho pavor de violência, por outro. Não consigo me sentir livre, de forma alguma consigo isso. Eu sempre me sinto subjugado a um poder superior, mesmo que ele concretamente não exista. Como se tivesse de agradar ou não desagradar algo ou alguém. E por aí vai. Já tentei enfrentar o problema por leituras, mas não consegui. Os fantasmas me perseguem e não há nada que possa fazê-los parar.
As imagens do filme são cruas. Não parece haver edição (embora haja). Nada parece verdadeiramente feito para agradar, muito ao contrário. A câmera opta por um lado, o do No. Bernal posa de herói o tempo todo, embora com todas suas contradições. Ao terminar a apuração da votação, como que fica no ar que se não fosse por ele, nada haveria acontecido como foi. Mas ele não sorri, não festeja. Parece uma figura deslocada, ou simplesmente se dá maior relevo à personagem tornando-a imutável, impossível de enquadrar nessa tênue felicidade.
O filme faz uso de personalidades reais (Ailwyn e o apresentador/comentarista) como forma de reforçar o caráter documental do filme. Realmente o filme ultrapassa a linha fina. Não é documentário mas também não é pura ficção. Nem é inspirada em fatos reais. É, ao contrário, como que uma suposta reprodução de um real com um ponto de vista especial: o da publicidade. Pois é o fato de embarcar em vender o No como produto que faz a posição ganhar (não só isso, é claro).
Como sempre, em todo evento real de que participei, mesmo que de longe, sinto-me como um coadjuvante. Não como um ator, digo, mas como um personagem que fica de lado, incapaz de aparecer nem de desaparecer. É uma presença que me faz sofrer continuadamente, pois preferiria esquecer - o que não consigo e, aliás, nem mesmo quero. Tudo isso faz com que me sinta tolhido, sim, em minha própria existência. Como se a esta fosse cabido restringir-se à posição de objeto face a forças mais poderosas. Algo em que reluto, e por isso - creio - sofra tanto. Pois sofro também no caso do holocausto - como se de alguma forma eu me visse, como ser humano, involucrado nisso tudo -, nos suicídios decorrentes, e em muitos outros acontecimentos históricos que conseguem me tirar do sério e fazer a dor do inconsciente aflorar.
Choro várias vezes durante a projeção. Mas choros breves, de quem se deixa envolver mas logo reafirma o prumo. 

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