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Santa Maria e o reles ofício de tocar a vida

Ontem mesmo, o Ruy Filho, da Antro Positivo, escreveu um condoído texto em que ele reflete nosso miserável ofício diante dos dilemas envolvidos num episódio como o da boate Kiss, em Santa Maria, RS, em que mais de 230 jovens morreram por causa de um incêndio, havendo centenas de outros em graves condições de saúde.


Sim, Ruy, diria eu, é difícil continuar acreditando em nossos miseráveis ofícios quando algo como aquilo acontece.

Mas pararia eu por aí. Por quê?

Bom, trabalho em duas revistas sobre materiais desde 2003. Sou editor técnico de ambas. As revistas são conduzidas de forma a primeiro, conseguir cobrir as despesas, e segundo, dar lucro. O conteúdo técnico é quase uma premissa em última instância irrelevante. Basta cumprir as pautas e tudo bem. Não há nada no perfil das publicações que conduza a qualquer idealismo.

Ocorre que acompanho esses mercados todo o tempo e que vejo, sim, progressos em termos de busca por materiais mais seguros, menos tóxicos ou mesmo mais eficientes. Isso acontece pela defesa e acompanhamento de normas de segurança a que todo material é sujeito. No caso da boate, por exemplo, a espuma que pegou fogo é muito provavelmente de poliuretano. É ela quem gerou toda a fumaça que matou tanta gente. Pois então, com toda certeza os engenheiros irão se ver agora (e novamente) diante do dilema (que aliás eu sei que conhecem muito bem): como evitar que isso ocorra novamente? Eles sabem: existem espumas com retardantes de chama e redutores de fumaça. Teriam sido essas espumas usadas na boate Kiss? Claro que não. Por quê? Em geral, por economia.

Claro, não entro nas questões relativas a alvarás, ausência de rotas suficientes de fuga, e coisas que o valha. Isso é problema de polícia. Assim como é questão de política toda a reflexão quanto à liberação de alvarás ou avaliações de segurança pelo Corpo de Bombeiros.

Agora, passados tantos mortos, cabe a todos refletir algo mais a respeito. É uma pena que tenha sido necessário isso ocorrer, mas o fato é que só agora, e por algum tempo (apenas), os engenheiros e arquitetos ver-se-ão (novamente) face o difícil dilema: gastar mais para isso não acontecer? Questione um momento a si mesmo: você sabe como enfrentar o fogo no prédio em que mora? Sabe como manejar os três tipos de extintores que seu prédio precisa ter? Sabe de quanto em quanto tempo os extintores e mangueiras devem ser inspecionados? Sabe quanto isso custa? Sabe quem é que faz isso? Em geral, eu sei, a resposta é um rotundo NÃO. Então saiba: você é corresponsável por qualquer acontecimento funesto que possa acontecer. Todo mundo, em prédio, deixa essa dor de cabeça ao síndico. É ilusão achar que assim as coisas funcionem. Mais um ponto: existe em seu prédio a necessária brigada de incêndio (obrigatória)? Então.

Em geral, eu sei que a defesa de materiais mais seguros é tarefa ingrata. Assim como a questão de cobrar inspeções e atitudes em nome de maior segurança. Mas sempre há espaço para isso, sim.

E o nosso ofício como publishers de teatro? Como sentir-se diante de situações tão mais reais como essa? Diria eu que da mesma forma. Ajudando a pensar adequadamente, ajudamos sim a o mundo melhorar. Aos poucos, claro, mas ajudamos. É essa a chamada tarefa civilizatória a que TODOS estamos sujeitos, queiramos ou não.

Por isso, diria eu ao Ruy, calma meu caro, continuemos acreditando no que mais vale a pena que, sem que o consigamos prever, um dia veremos, pouco a pouco, nosso mundo mudar. Por enquanto, porém, só mesmo as lágrimas.

Pena.

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