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Fatia de Guerra, de Andrew Knoll (direção, Roberto Alvim)

Assisto a peça pela primeira vez meio que convicto de que o que rolaria seria uma espécie de pout-pourri de lembranças de uma guerra indeterminada. Mais ou menos.


Há três atores no palco, dois dos quais mulheres. Nota-se claramente que a menina faz a menina, que a mulher mais velha meio que corporifica um cão e que o homem, mais velho, faz as vezes de pai. Só isso já serve para determinar, nem que seja genericamente, o indeterminado. Há uma guerra? Que guerra é essa? A menção ao cogumelo faz as vezes de inserir a bomba atômica na trama? A menção ao filete de sangue no nariz da menina convidaria a uma remissão a efeitos tardios de um dano interno? (Quase) tudo permanece em suspenso. Mas há um suspense.

Á calmaria do início idílico soma-se aos poucos a remissão a um assassinato. O da cachorra. Que fala. Que faz menção a uma arma que ela própria cavouca no solo e que o pai utiliza para dar fim ao seu sofrimento - estaria doente. Doente de quê? Não sabemos. A arma, ela própria, também fala. Fala de sua excelência, do movimento de empunhar e atirar. Da sensação de saída da bala e do odor da pólvora. Tudo está lá. Tudo está em diferentes olhares. Por objetos animados, inanimados, animais e, por que não, também gente.

As idas e vindas do texto, presentes na edição pela 7 Letras - que o Alvim me regala, não supõem contudo uma leitura unívoca. Nem mesmo uma leitura passível de ser melhor do que outra. Todas as leituras complementam-se, e os sujeitos podem ser multiplicados ao bel prazer da leitura, algo que necessariamente irá afetar a encenação. Que, como o próprio Alvim sempre ressalta, é apenas uma opção. Podem haver muitas outras. O próprio Alvim também salienta que este texto do Knoll tem também o mérito de ser o primeiro de toda a série publicada e a publicar, encenada e a encenar, a optar por um formato diferenciado de dramaturgia. Não há sujeitos determinados, a exposição do texto no papel obedece a critérios variados, tanto em fontes como em disposição nas páginas, tudo parece estar desconectado, mas é só impressão. Os outros textos da Mostra Brasileira de Dramaturgia Contemporâneo devem a este muito, muito, como ele próprio diz.

A encenação é minimalista, como em geral nas peças da Cia Club Noir. Domina toda a peça, em toda sua duração, um drama presente nas vozes, e no relacionamento estabelecido entre as vozes e não os corpos. Tudo está distanciado de tudo, é o que parece existir. Os relacionamentos são tênues ou fortes a depender do contexto, e o sofrimento, quando presente, estabelecido às raias do desespero. A peça é tensa. E não há música alguma a fazer frente àquilo que se vê, se sente e se sofre.

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