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Mulheres, de Charles Bukowski (adaptação de Mário Bortolotto, direção de Fernanda D'Umbra) (2a vez)

Assisto, pela segunda vez, esta superprodução do grupo Cemitério de Automóveis, capitaneado pelo Mário Bortolotto. Vou com o intuito claro de curtir, mais uma vez, mas também tentando capturar dicas, vislumbrar distinções e entender como é que aquilo que funciona de uma forma, uma vez, pode não funcionar de outra forma, outra vez.


O público, pelo que notei, tirando uma ou outra presença de amigos, foi desta vez composto de ilustres desconhecidos, gente que não deve acompanhar o trabalho do grupo de perto ou que ficou atraído pelo mote Bukowski. Afinal, esta peça é uma novidade. Nunca foi encenado Bukowski por grupo tão identificado com seu universo e sua forma de ver e entender a vida. O próprio Marião reconhece ser o velho Buk o autor com que ele mais se identifica.

Como disse eu da primeira vez, a peça sustenta-se em blocos de duração variável (menores quando a trama é mais elétrica) que narram como é que Chinaski, alter-ego de Buk, lida com sua repentina (ou gradual) transformação em grande astro, em pólo que atrai mais e mais mulheres, logo a ele que até os 50 era praticamente um ermitão e em que seu conhecimento do assunto era no mínimo parco. Hilário é como a Lívia, interpretada até este domingo pela também diretora Fernanda D'Umbra, explica ao Buk em começo de carreira de putaria como é composta uma buceta e como funciona, em linhas gerais, o clitóris. "Rosinha, ele às vezes se esconde, é preciso fazer assim (lambe) para que ele saia e se mostre", ou mais ou menos isso.

Com Lívia ou sem ela, fato é que a vida do protagonista torna-se uma grande farra de mulheres a se interessarem por ele para valer, outras que vêm meio que para conferir o que imaginam, outras que vêm só pelo prazer do sexo fácil ou da farra, e outras que mostram ter noções de outra vida. Enquanto isso, Chinaski pena, atendendo o telefone, tentando entender o que deve fazer, caindo na farra com as mulheres que entram e saem e mal sabendo lidar, no fim das contas, com seu desejo e sua sanidade.

No último terço da peça, que leva 2 horas, aparece Sara, a mulher que iria tirar Chinaski e portanto Buk dessa Roda-Viva. Ela não aceita sexo antes do casamento e cuida dele com atenção e suprema paciência. Ao final, tentando finalmente evitar perdê-la, Chinaski resume o sofrimento que conduziu sua trajetória e sua final cartada em busca da paz.

Gosto para caralho dos desempenhos do Marião, contido, da Fernanda, absolutamente desprovida de equilíbrio e posteriormente sujeita a uma sincera aflição, da Samya e Tuca, que se metamorfoseiam diversas vezes tanto em roupas como em personalidades, variando da piração completa à inacreditável caretice de algumas das personagens, da Wanessa, que expressa, em suas personagens, a necessária frieza e delicadeza, sumindo como que de repente sem perder o centralismo da trama, da Débora, que vai da delicadeza da menininha bonitinha à crueza de uma puta de baixo nível (isto não é um pleonasmo), do Pablo, dono de instantes hilários, e por último do Batata (Walter Figueiredo), com os personagens aparentemente mais limitados mas também hilários.

Continuo suspeito, contudo, para falar, porque não consigo analisar o que vejo. Nem quero.

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