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Dramáticas do Transumano, de Roberto Alvim (7 Letras)

Não se deixe levar pelo título, de alguma forma pomposo - ou pretencioso, para outros. "Dramáticas do Transumano", do diretor da Cia Club Noir, Roberto Alvim, visa romper barreiras. Quais barreiras? As que mantêm o teatro contemporâneo preso a paradigmas do passado. Paradigmas aqui está bem colocado, pois assim como Thomas Kuhn fez com a ciência contemporânea, ao desfraldar a noção de paradigma pela primeira vez, a assunção de novos paradigmas pode ser a saída encontrada por alguns para fazer do teatro algo mais do que espetáculos de fácil digestão ou "viagens" que para muitos não parecem levar a nada.


O livro é resultado de reflexões de Alvim face às 8 obras que, de uma oficina transcorrida em Curitiba, foram escolhidas como representantes do novo e bom teatro brasileiro contemporâneo. Essas obras foram, na sua integridade, frutos tanto da oficina quanto das opções transgressoras dos seus autores, em geral novatos ou com relativa pequena trajetória no teatro brasileiro dos dias de hoje.

Não se espere do livro um tratado. "Dramáticas do Transumano" não é nem pretende ser um. Dividido em três partes, I, II e III, a obra (que é apenas parte do livro) pressupõe uma certa abertura do leitor ao pensamento especulativo. Não há uma forma a priori de ordenar a obra. Ora ela se dá opondo as chamadas "Dramáticas do Humano" às "do Transumano" - o que se dá já na primeira página -, ora desenvolvendo motivos tais como "o deslocamento é o centro de gravidade", "esquizofrenia como sistema estético", "subject: non human" e daí em diante. Pode-se entender, contudo, que todas as formulações, expressas em parágrafos de poucas frases, são apontamentos que se propõem mirar muito longe, ora às tramas da filosofia antiga e contemporânea, ora ao diálogo com a arte antiga e principalmente contemporãnea, ora a concepções que para alguns com certeza são mostras de falsa invencionice (veja-se, por exemplo, "a rã é o paradigma destas dramáticas - híbrido aos saltos"). Ocorre que Alvim é sério e fala a sério. Tão a sério que o livro é apenas o primeiro de vários que trazem a público aquelas oito obras selecionadas na oficina citada. Destes outros livros, já saíram mais dois, 1) "Hieronymus nas Masmorras", de Luiz Felipe Leprevost, e "(Em) Branco", de Patrícia Kamis, e 2) "Procurado", de XXXX e "XXXX", de XXXXX). Com recursos do fomento, Alvim trouxe a público, em montagens e livros, aquilo a partir do que ele partiu para propor uma nova abordagem para o teatro contemporâneo, seja nacional, seja estrangeiro. Todas as peças foram ou vão ser encenadas pela Cia. Club Noir, cujo teatro localiza-se na Rua Augusta, 311.

O aspecto a meu ver mais interessante do livro de Alvim é o fato de ele se propor dialogar com o leitor. Todos os apontamentos, nesse sentido, são radicais. Afirmações que exigem que o leitor as entenda, em primeiro lugar, e que se posicione em relação a elas, em segundo. É uma estratégia similar ao dramaturgo Valère Novarina, em seu "Diante da palavra", também publicado pela carioca 7 Letras. Pode-se sair desnorteado com tamanha erudição sob forma de fortes provocações, irritado com tanta exigência feita ao leitor ou mesmo esgotado ao ponto de só restar ao leitor concordar e deixar o livro mofando na estante. Pegue-se por exemplo o seguinte trecho (escolhido ao acaso): "faz-me o estro dizer formas em novos corpos mudadas. (ovídio, metamorfoses)/ META/ MORFO/ LOGICUM" (estes últimos termos impressos em fontes bem maiores que as anteriores). Há diálogo aqui com Ovídio, isso é claro, e por isso se exige do leitor um conhecimento prévio, mas o que dizer dos últimos termos? Onde se dá o diálogo? Em que direção? (É claro que tudo pode ser explicado, pelo próprio Alvim ou por algum bom leitor, mas o que destaco é que sem uma leitura do passado e do presente não é simplesmente possível auferir muita coisa).

Outro aspecto a salientar é a variedade de tipos e tamanhos de fontes para os textos, e o uso radical do espaço vazio como signo motivando um significante determinado. Por exemplo, bem na página 40, em que "i am not a human being" encima a página, que em seu centro e deslocada à direita tem "me permita experienciar intensidades/ e não me diga nada/ (mas faça tudo isso com palavras)", para a página seguinte vir a ser encabeçada por "beyond human" (além do humano).

Alvim tem também se notabilizado, com sua esposa e parceira Juliana Galdino, em encenar clássicos de forma fora do convencional mas extremamente respeitosa à tradição, como se deu em 2012 e continuará em 2013 a encenação de todas as obras de Ésquilo (conjunto batizado de Peep Classic Ésquilo), numa proposta que, sem pretender explicar por quê, dialoga tanto com a arte contemporânea, no caso com Malevich, como com o minimalismo não restrito à sua vertente musical. Estas últimas encenações deram à Cia Club Noir um destacado reconhecimento (na "Folha de S. Paulo") e uma notável exposição - em alguns casos com casa cheia. Eu mesmo vi quase todas as obras diversas vezes - tanto as de Ésquilo quanto as relativas às Dramáticas do Transumano -, sempre tendo a auferir algo diferente e ainda mais profundo de cada uma das encenações. Em suma, eu sou um fã confesso, o que não me deixa cego a aspectos em que, na minha muito humilde opinião, o que vejo descamba em certo exagero. Aí eu desço do bonde mesmo.

Se você trabalha ou curte o teatro com seriedade e busca dialogar com quem dialoga seriamente com a tradição e com as pistas dadas pelos mais destacados artistas do passado e do presente em busca de um "novo" que salte aos olhos e que realmente faça alguma diferença tanto para o espectador comum quanto para o especialista, considero realmente obrigatório adquirir "Dramáticas do Transumano" (livro que possui vários outros escritos e mais a peça Pinokio, do próprio Alvim). Pois o fato é que se pode até discordar radicalmente dos horizontes que o diretor carioca radicado desde 2006 em São Paulo pretende descortinar para aquilo que sempre teimosamente ousa vislumbrar aqui e acolá em obras nacionais e estrangeiras, mas é temeroso não se abrir para discutir, que seja introspectivamente, essa notável tentativa de entender de onde viemos e para onde vamos - referindo-me especificamente ao teatro (embora possa-se também ir além).

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