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Fassbinder, Loureiro e a humanidade dos personagens


Tenho um pequeno livro sobre e com o Fassbinder, e nele, um trecho causa-me uma impressão especial: quando, ao se referirem a ele, dizem que ele olhava os seus personagens sempre com um olhar compassivo, respeitoso, humano até.
O Loureiro lembrou-me esse trecho ao analisar a cena que fizemos em que eu faço uma bicha aidética sádica e quatro prostitutas, cada uma com sua história de sofrimento e dor. Na hora, ele disse que poderíamos emburacar a humanidade de cada prostituta, sendo esse um caminho viável, quando não o único.
Na hora eu estranhei. Por várias razões (algumas pessoais). Diria apenas a vocês que as prostitutas baseiam-se, regra geral, em minha própria experiência com elas - conheci muitas delas, muitas mesmo. Tem uma delas em especial que tem uma realidade acachapante: uma pequenininha feinha disputada a tapa pelos clientes. Por quê? Porque só ela fazia anal - não acreditem quando dizem que todas elas fazem, é mentira. Os caras queriam ela de qualquer jeito. Ela trabalhava o tempo todo. Lembro-me bem como ela era. Pequena, magrinha, cabelo encaracolado, mal vestida até. Pouco importava. Era ela a renda da casa. Em nossa cena, a Rê faz a garota.
Voltando ao assunto. Quando a gente, em especial a Lê e eu, vislumbramos a cena, queríamos ressaltar a crueldade envolvida no trato entre elas e entre elas e a bicha. Mas o Loureiro apontou outra direção. Pensei, caralho, mas será que é isso mesmo? Daí que lembrei do Fassbinder.
Eu tenho algo de extremamente cruel enquanto criador. Muitas vezes estou cagando para o personagem. Muitas vezes quero ver o circo pegar fogo e mal imagino algo de humanidade restar de tudo o que apresento. Sou cruel, acreditem. É como se eu não acreditasse mais na humanidade. É como se eu me vingasse.
Mas o fato é que, ao menos por enquanto, me sinto melhor nas cenas suaves, sutis, amorosas, até. São elas que me dão tesão de teatro; são elas que me acendem a curiosidade pelo universo do ator e do espectador. É como ouvir o último Leonard Cohen, que acabo de cantar - e com o qual chorei um pouco.
Vai entender o que acontece aqui comigo. Por enquanto, aproveito a paisagem. Vejamos o que irá restar de toda ela.

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