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Borrasca (texto e direção: Mário Bortolotto, estréia)


Chego cedo ao Teatro Cemitério de Automóveis. Encontro o pessoal conversando, o Marião entre eles, e ele já me inclui na lista amiga. Sou o primeiro a comprar ingresso. Chega Mirisola e mais pessoal, que ficam lá fora. Vou lá uma hora e fico até o movimento acalmar.
A peça é a última do Marião, que segundo alguns fez o texto na pauleira. A peça tem destaque no Guia da Folha, se bem que com o Batata como um dos personagens - na estréia, os atores foram o próprio Marião e o Pablo. A história é resumida como uma conversa entre dois amigos sobre a morte de outro.
O cenário, como quase sempre nas peças do Marião, é singelo. Um sofá e uma mesa, aqui uma geladeira, lá um banheiro. A porta lá no fundo é a saída (eu sentia falta dessa porta, que em Mulheres era a porta de um quarto - não sei por quê, queria ver o pessoal sair por lá rumo ao desconhecido - como em Inferno em Mim e outra penca de peças do pessoal).
Gabriel (Marião) é um escritor que deixa de ir ao enterro do amigo - que roubou sua mulher. Não me lembro do nome do personagem interpretado pelo Pablo. O personagem chega do enterro, após uma chuva dessas bem fortes. Conversam sobre o finado, enquanto Gabriel recebe ligações da Luciana, a ex-mulher roubada pelo Enzo, o morto. "Pablo" e Gabriel trocam impressões sobre aquilo que Enzo representava para eles, como ele os entendia, como ele entendia a vida, como ele entendia as mulheres, etc. Tudo ou praticamente tudo gira em torno do morto. Num determinado momento, "Pablo" e Gabriel se atracam, dado o imperativo moral que cerca as relações entre amigos.
Como no programa da peça ou nos resumos dos guias, torna-se claro que tudo gira em torno do significado que certas pessoas adquirem em nossas vidas. Borrasca é a alegoria a representar o embate. Não é uma tempestade, é uma borrasca. Enzo teria sido uma. Eles saem, a peça acaba.
Os diálogos são bem do estilo do Marião. Mas a peça demora a engrenar, envolta em bebida representada por um Jack ou um Gentleman Jack (que não é bebida, claro). Os símbolos a circundar a trama são expressos em bifes desenvolvidos especialmente pelo Gabriel. A vida, como sempre, está posta em questão. Somos defrontados diante das perspectivas envolvendo sujeitos comuns dos 30 aos 50 anos, desta vez com a morte em destaque, a morte do Enzo. Ao final, resta o sabor amargo da consciência. A consciência da fragilidade das coisas, e ainda mais da passagem dos outros em nossas vidas.

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