Sou convidado pela Gabriela, que conheci por intermédio do Ruy Filho. Fizemos, há meses, uma crítica a quatro mãos para a Antro Positivo. Depois, não nos encontramos mais. Fiquei sabendo da peça de sua autoria. Fui curioso.
Acabando de ler a resenha crítica da Época São Paulo, reflito agora - após vários dias de ver a peça, inclusive após a Virada Cultural - naquilo que pude SENTIR do que vi.
Que a encenação é minimalista e de índole beckettiana, basta um olhar para entender. Mas há mais aqui.
Em última instância, o que existe em cena? Uma mulher nua lá ao fundo, envolta em fumaça e com uma luz que faz as vezes de movimento. Uma mulher do lado esquerdo, vestindo um casaco verde, em diagonal (não é possível ver-lhe o rosto), envolta em fumaça, com uma luz que lhe aumenta ou diminui o porte durante o transcorrer da peça. Que é um texto onipresente, quase sempre em primeira pessoa, narrando o inenarrável; aspectos da vida que optamos por manter escondidos em nós mesmos. As afinidades eletivas que nos fazem viajar em meio à vida e em meio aos que nos rodeiam e que nos avassalam, a maior parte do tempo.
Entendo (não sinto) que há em questão uma mulher que, ao fundo, é invadida pelo mundo e que nua expressa toda sua fragilidade. Uma mulher com problemas, que podem ou não ser de ordem psíquica, mas que a afastam e aproximam do mundo a que nos acostumamos - e ao qual ela não consegue se acostumar. Disse que os seus problemas podem OU NÃO ser de ordem psíquica, mas isso é ilusório. A mulher sofre choques. A mulher é submetida a choques. Os choques aparecem como devem aparecer àquele que os sofre: como explosão de luzes e som encobrindo as vontades dos que os aplicam e dividindo o tempo em duas metades que não conseguem mais se unir - e que nos deixam ainda mais descolados do real. Choques para unir o que acabam separando de forma inapelável. Lembro do meu pai.
A atriz ao fundo, aquela que está nua, transparece gestos mínimos que, relativos ao jogo de luzes que a invadem, tornam-se enormes, pois nosso foco está nela, em sua condição de fragilidade. Seus piscares de olhos abrem janelas em nossa percepção e dialogam com as falas que dominam todo o entorno. Como que entramos nela de duas formas: por dentro e por fora. Ela está sendo invadida, completamente.
Reparo que a atriz à esquerda, aquela com o casaco verde, se movimenta levemente com o correr do texto. Imagino que seja ela quem o está lendo, ou recitando. Mas não tenho certeza. Ela permanece, é certo, como figuras que nos seguem por toda a vida. Ela é a figura da outra, da nua. Ela cumpre aqui alguma função. Ao menos a atriz que está nua não parece tão só. Mas eis que ela, sim, está só. Completamente.
Os jogos de luzes são violentos. É impossível enxergar com a vista acostumada à penumbra e à fumaça o que há por trás desses focos de luz que nos molestam. Percebemos, pela força, a dramaticidade do que existe. Percebo que isso é o que eu também quero naquilo que faço. A consciência da invasão, da violenta invasão do mundo por cima e por baixo de nós.
Não saio tonto como poderia sair se me deixasse influenciar ainda mais pela dramaticidade do existir dessa personagem tão violentamente envolvida pelo mundo. De alguma forma, me incomoda essa insistência na transviação, na existência por trás do fenômeno psíquico, mas não posso deixar de sentir uma satisfação em reparar que a violência não é algo que somente eu percebo a tal ponto. O texto da Gabriela domina e a direção do Marcos Damasceno faz forma a uma mensagem que abre espaço para discussões. Eu, de minha parte, creio haver entendido.
É forte.
Sesc Consolação, Sala Beta, Quintas e Sextas às 20h.
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