Pular para o conteúdo principal

Os Adultos estão na Sala (texto e direção: Michelle Ferreira)

Existem formas de o ser humano se expressar que impõem em mim mais respeito que o realismo.
Neste caso, nesta peça da Michelle Ferreira, dramaturga e artista de influências diversas e amiga do Marião, o que mais me chamou a atenção já desde os primeiros minutos desta simpática peça foi o jeito estabanado das três personagens principais. Um quê de exagero distante de um realismo chato que poderia dar à trama algo de ultrapassado. Afinal, o que poderia tanto nos atrair nas impressões de um garoto face três mulheres adultas - que é, em última medida, a trama principal de toda a bagaça?
O fato é que meu olhar ficou assoberbado. Com a incansável leveza das três protagonistas, que seguindo uma linha de quadrinhos, personagens caricatos sem serem caricaturas, não conseguiam deixar meu olhar se afastar, em especial no caso da personagem da excelente Michelle Boesche. Dizem que o feio atrai até mais que o bonito. Certo, a Michelle não é bonita, e as muecas de sua personagem são estupidificantes; o fato, porém, é que eu a tal ponto embarquei em seu desempenho que até por vezes me esquecia do que estava ouvindo ou mesmo vendo à minha frente. Eu ficava absorto nas muecas da atriz, é certo.
A trama propriamente dita é dita a partir da metade da peça. Insólito é ver como dois tênis de garoto realmente substituem o personagem, e como as intercalações das personagens conseguem dar vez e voz àquilo que não existe, realmente não existe.
A partir dos dois terços da peça, algo acontece. As personagens não mais exageram nos gestos, as falas tornam-se realistas, ao mesmo tempo em que, do avesso (com o sofá de costas para nós), vemos uma camada de realidade que parece ser a aparente, ao passo que a primeira era a real. Sim, vemos que as mulheres do começo eram vistas sob um olhar determinado, ao passo que as outras acabam recaindo numa espécie de limbo do real.
Senti uma riqueza interminável ao assistir a peça, que pretendo rever. Sugiro com bastante insistência.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm...

4.48 Psicose (peça de Sarah Kane, tradução de Laerte Mello)

Há realmente algo de muito estranho e forte nesta última peça da Sarah Kane. E não é porque ela se matou em seguida, aos 28 anos. O assunto é claro desde o começo: uma depressão mortal. É como se fosse um testamento. Muitos lados da questão são expostos de forma esparsa - não sei se todos nem se isso afinal é possível -, e ao final da leitura a gente fica com um sabor amargo na boca. Dá vontade de reler, muito embora passe o desejo de decifrar. Isto torna-se secundário, aqui. Há algo que permanece, e creio que isso se deva à qualidade do que é feito e à integridade do que é dito. Pego por exemplo, já na primeira página: "corpo (...) contém uma verdade que ninguém nunca fala". É óbvio do que se trata: da extrapolação do fisiológico, de uma lógica de que por mais que se tente diagnosticar "nunca se fala". Abre-se uma porta à compreensão disso que não sabemos muito bem o que é. A força de "Lembre-se da luz e acredite na luz/ Um instante de claridade antes da ...

(Em) Branco (de Patricia Kamis, dir. Roberto Alvim, Club Noir, 3as a 5as durante o mês de agosto)

Fui à estreia da segunda peça da leva de oito novos selecionados que o Alvim vai encenar municiado de sua leitura na noite anterior. Esperava ver algo relativamente tradicional e nutria um certo receio de déja vu. A atriz e os dois atores permanecem estáticos em quadrados iluminados por baixo. O caráter estático não se refere apenas ao corpo em contraponto com o rosto, mas também a este, mutável apenas (e repentinamente) por expressões fugazes. Os olhares permanecem fixos. O texto segue a ordem 1, 2, 3 (segundo o Alvim, emissores mas não sujeitos), que eu imaginava que iria entediar. As falas são ora fugazes ora propositalmente lentas e sua relação tem muito a ver com o tempo assumido em um e outro momento. Não irei entrar no âmago da peça. Nem irei reproduzir o que a própria autora, o dramaturgo Luciano Mazza e o próprio Alvim disseram no debate posterior a ela. Direi apenas que durante ela nossa sensibilidade é jogada de um lado a outro num contínuo aparentemente sem fim sem c...