A questão do provincianismo e da necessidade de fugir da necessidade de satisfazer influências externas
O longo título deste pequeno texto diz respeito, em poucas linhas, ao caráter colonizado que todo latinoamericano assume com respeito àquilo que produz em relação às influências advindas da metrópoles (ou metrópoles, porque um colonizado o é com respeito a muitos outros que se fazem passar de superiores).
Tudo surgiu imediatamente antes e após (embora se origine de muitos antes) assistir A Dama do Mar, de Bob Wilson, no Sesc Pinheiros. Eu já havia tido a oportunidade de assistir o encenador em outras ocasiões. Mas relutava por vários motivos. Primeiro, a admiração face sua trajetória. Segundo, a relutância em me sentir admirando aquilo que ele faz, como se eu me sentisse bem em ser colonizado. Terceiro, a tentação de imitá-lo, de alguma forma - já que quero seguir trajetória própria. Eu não sabia mais se queria ver alguma de suas produções, mesmo alguma menor.
Prestes a comprar ingresso para outra peça, no Sesc Consolação, o sujeito logo à frente na fila estava vislumbrando assistir A Dama, sobre a qual eu não sabia nada, ainda. O sujeito deixou para depois e eu comprei o ingresso que queria. Mas fiquei com o título na cabeça. Foi só ao ver o jornal no dia seguinte que vi que A Dama era produção do norteamericano. Fui assistir à primeira peça e cheguei antes no Sesc (Vila Mariana) para ver se havia ingresso para A Dama. Havia. Fiquei no I37, quase bem ao canto. Não iria imaginar que o Sesc iria me atribuir poltrona ao centro, dado o lugar incômodo - do qual eu iria perder bastante do que acontecia. Não sei exatamente que poltrona ocupei, só sei que via bem tudo.
Deixarei minhas impressões sobre a peça em outro artigo. Aqui quero discutir esse negócio de provincianismo e influências.
Começo por um início no mínimo estranho. Meu "amigo" Emil Cioran (nunca o conheci, claro) diz, em uma das várias entrevistas que concedeu, que admira em especial os latinoamericanos por seu cosmopolitismo. Ele diz que os latinos se interessam, como poucos outros, pelas outras civilizações.
Ele não leva em conta que essa fixação pelo que está fora pode confundir-se com subserviência àquilo que vem de fora (em contraposição àquilo que está dentro) e por ausência de originalidade. Eu diria que isso pode acontecer facilmente, e que a distância entre subserviência e cosmopolitismo é por demais sutil, para dizer o mínimo. Cosmopolita, pelo que entendo, é aquele que navega em várias águas civilizatórias, captando o que há de melhor em cada uma. Mas o cosmopolita parece agregar em si uma noção profunda da própria originalidade, que está também nisso mesmo. Já o subserviente coloca embaixo do que há de fora tudo o que produz.
Eu venho de uma outra nação, o Chile. Mas me naturalizei e bebo de muito do que há aqui dentro. Em música, samba, mpb, rock, etc. Mas minhas maiores influências vêm inelutavelmente de fora. Pois sinto no que há aqui dentro algo que me capta, mas em sentido mais sutil do que aquilo que há lá fora. O samba é suave. A mpb, também. O rock, derivado - gosto da originalidade de um Cazuza, por exemplo, mas este bebia de muitas fontes. No geral, capto lá fora sentimentos que aqui dentro não vejo quem professe, ao menos na literalidade que me atrai, e portanto, de certa forma, sinto-me rebaixado ao que acontece lá fora. Mas não vejo seriados estrangeiros, nem séries, nem nada. Minha relação com o que há na cultura lá de fora restringe-se a certa música e certos livros.
Agora vamos a Bob Wilson. Antes de vê-lo, eu já havia me sentido atraído por algo naquilo que aparecia em fotos e vídeos no youtube. Para captar minha curiosidade, li o único livro brasileiro a respeito de sua obra, e mais importante, de seus processos criativos - Os processos criativos de Bob Wilson, de Galizia (Perspectiva). Lá vi como ele surgiu, de âmbitos inusitados, e como se impôs no cenário mundial - com peças longuíssimas, e pesquisas em âmbitos inacreditavelmente ligados ao teatro. Eu já o admirava por beber de fontes outras, que não o teatro tradicional. Via nele a possibilidade de abrir espaço no teatro de forma inédita, sem necessariamente ter de entender de teatro.
Mas, assistindo-o, fiquei chapado. Não consegui divisar linha comum com o que vejo aqui nestas paragens. Parecia ocupar um lugar próprio nesse universo, parecia que tudo o que via não tinha similar. Claro, todos destacam o primor com que o norteamericano trata o cenário - ele é encenador, afinal de contas, mas não foi isso o que mais me atraiu (creio). Fato é que vi como funcionava esse negócio de movimentos lentos e compassados - e como se adequavam àquilo que estava sendo dito ou mostrado. Vi como esse recurso de mudar as cores a depender da carga dramática do que era dito, apesar de simples, criava conexões em mim que me deixavam em suspenso. Via a razão disso, mas ao mesmo tempo algo mais era dito. Algo que escapava da razão.
Acabo de ler a apresentação que o Sérgio de Carvalho faz do livro de Lehmann, o conhecidíssimo Teatro Pós-Dramático, e da posição de Heiner Müller quanto ao norteamericano, chamando-o de herdeiro de Brecht. A argumentação, no livro, supera em muito minhas indagações, e não sei se quero avançar nesse sentido (além do que desconfio desse tipo de nomeação a posteriori). Mas de fato vejo algo superior nessa forma de apresentar peça estranha a ele - com texto da Susan Sontag. Não vemos Ibsen, fique sossegado. Bebemos Sontag. Por que superior? Porque com ele consigo de certa forma entender as posições de um Craig. Com ele consigo criar um nexo entre as novidades do começo do século XX (entre elas, Kantor) e a filosofia e arte contemporâneas. Esquisito é chamar o teatro de Wilson de teatro da morte, à primeira vista. Mas, refletindo sobre Kantor e "conquistas" posteriores, assim como com dilemas contemporâneos para o ser humano, posso entender por que Wilson tem a ver com uma certa poética da morte. Os outros posam, comparados a ele, de românticos, não entendem?
Voltando ao tema deste artigo: em que ponto posso considerar que minha postura diante do trabalho do norteamericano passa por subserviente? Ele me permitiu ver mais longe. Ele me permitiu criar nexos entre coisas que estavam soltas em mim. Ele me permitiu entender melhor tudo o que havia aprendido. Ele já faz parte da tradição. Ele não rompeu nada em mim. Ele conjugou. Nesse sentido, não me senti provocado. Ao contrário. Haverá algo de errado nisso? Não sei. Sei apenas que essa provocação, tentada por muitos, em mim parece não ter mais guarida. E quem sabe por isso mesmo consiga embarcar em sua canoa.
Venho passando por transformações radicais. Todo mundo sabe o quanto eu era limitado no palco. Agora faço papéis variados. Agora consigo decorar textos, passagens. Agora estou elencado numa peça por parte do Loureiro. Preciso, pela primeira vez, decorar ipsis litteris diálogos de outra pessoa. Tudo isso por que passo é transformador de forma que o Wilson não consegue ser. Mas com ele consigo enxergar mais longe. Sim, eu já disse isso, mas repito. É com ele, e com poucos outros, que consigo fazer meu tempo fazer algum sentido.
Agora há pouco entendi alguns nexos entre recursos dele e realidades vividas por mim. Agora mesmo pondero quanto a usar referências que só me dizem respeito e que por muitos podem passar por românticas. Mas o fato é que tento avançar com as próprias pernas. Onde isso vai me levar, não sei. Mas estou correndo.
Tudo surgiu imediatamente antes e após (embora se origine de muitos antes) assistir A Dama do Mar, de Bob Wilson, no Sesc Pinheiros. Eu já havia tido a oportunidade de assistir o encenador em outras ocasiões. Mas relutava por vários motivos. Primeiro, a admiração face sua trajetória. Segundo, a relutância em me sentir admirando aquilo que ele faz, como se eu me sentisse bem em ser colonizado. Terceiro, a tentação de imitá-lo, de alguma forma - já que quero seguir trajetória própria. Eu não sabia mais se queria ver alguma de suas produções, mesmo alguma menor.
Prestes a comprar ingresso para outra peça, no Sesc Consolação, o sujeito logo à frente na fila estava vislumbrando assistir A Dama, sobre a qual eu não sabia nada, ainda. O sujeito deixou para depois e eu comprei o ingresso que queria. Mas fiquei com o título na cabeça. Foi só ao ver o jornal no dia seguinte que vi que A Dama era produção do norteamericano. Fui assistir à primeira peça e cheguei antes no Sesc (Vila Mariana) para ver se havia ingresso para A Dama. Havia. Fiquei no I37, quase bem ao canto. Não iria imaginar que o Sesc iria me atribuir poltrona ao centro, dado o lugar incômodo - do qual eu iria perder bastante do que acontecia. Não sei exatamente que poltrona ocupei, só sei que via bem tudo.
Deixarei minhas impressões sobre a peça em outro artigo. Aqui quero discutir esse negócio de provincianismo e influências.
Começo por um início no mínimo estranho. Meu "amigo" Emil Cioran (nunca o conheci, claro) diz, em uma das várias entrevistas que concedeu, que admira em especial os latinoamericanos por seu cosmopolitismo. Ele diz que os latinos se interessam, como poucos outros, pelas outras civilizações.
Ele não leva em conta que essa fixação pelo que está fora pode confundir-se com subserviência àquilo que vem de fora (em contraposição àquilo que está dentro) e por ausência de originalidade. Eu diria que isso pode acontecer facilmente, e que a distância entre subserviência e cosmopolitismo é por demais sutil, para dizer o mínimo. Cosmopolita, pelo que entendo, é aquele que navega em várias águas civilizatórias, captando o que há de melhor em cada uma. Mas o cosmopolita parece agregar em si uma noção profunda da própria originalidade, que está também nisso mesmo. Já o subserviente coloca embaixo do que há de fora tudo o que produz.
Eu venho de uma outra nação, o Chile. Mas me naturalizei e bebo de muito do que há aqui dentro. Em música, samba, mpb, rock, etc. Mas minhas maiores influências vêm inelutavelmente de fora. Pois sinto no que há aqui dentro algo que me capta, mas em sentido mais sutil do que aquilo que há lá fora. O samba é suave. A mpb, também. O rock, derivado - gosto da originalidade de um Cazuza, por exemplo, mas este bebia de muitas fontes. No geral, capto lá fora sentimentos que aqui dentro não vejo quem professe, ao menos na literalidade que me atrai, e portanto, de certa forma, sinto-me rebaixado ao que acontece lá fora. Mas não vejo seriados estrangeiros, nem séries, nem nada. Minha relação com o que há na cultura lá de fora restringe-se a certa música e certos livros.
Agora vamos a Bob Wilson. Antes de vê-lo, eu já havia me sentido atraído por algo naquilo que aparecia em fotos e vídeos no youtube. Para captar minha curiosidade, li o único livro brasileiro a respeito de sua obra, e mais importante, de seus processos criativos - Os processos criativos de Bob Wilson, de Galizia (Perspectiva). Lá vi como ele surgiu, de âmbitos inusitados, e como se impôs no cenário mundial - com peças longuíssimas, e pesquisas em âmbitos inacreditavelmente ligados ao teatro. Eu já o admirava por beber de fontes outras, que não o teatro tradicional. Via nele a possibilidade de abrir espaço no teatro de forma inédita, sem necessariamente ter de entender de teatro.
Mas, assistindo-o, fiquei chapado. Não consegui divisar linha comum com o que vejo aqui nestas paragens. Parecia ocupar um lugar próprio nesse universo, parecia que tudo o que via não tinha similar. Claro, todos destacam o primor com que o norteamericano trata o cenário - ele é encenador, afinal de contas, mas não foi isso o que mais me atraiu (creio). Fato é que vi como funcionava esse negócio de movimentos lentos e compassados - e como se adequavam àquilo que estava sendo dito ou mostrado. Vi como esse recurso de mudar as cores a depender da carga dramática do que era dito, apesar de simples, criava conexões em mim que me deixavam em suspenso. Via a razão disso, mas ao mesmo tempo algo mais era dito. Algo que escapava da razão.
Acabo de ler a apresentação que o Sérgio de Carvalho faz do livro de Lehmann, o conhecidíssimo Teatro Pós-Dramático, e da posição de Heiner Müller quanto ao norteamericano, chamando-o de herdeiro de Brecht. A argumentação, no livro, supera em muito minhas indagações, e não sei se quero avançar nesse sentido (além do que desconfio desse tipo de nomeação a posteriori). Mas de fato vejo algo superior nessa forma de apresentar peça estranha a ele - com texto da Susan Sontag. Não vemos Ibsen, fique sossegado. Bebemos Sontag. Por que superior? Porque com ele consigo de certa forma entender as posições de um Craig. Com ele consigo criar um nexo entre as novidades do começo do século XX (entre elas, Kantor) e a filosofia e arte contemporâneas. Esquisito é chamar o teatro de Wilson de teatro da morte, à primeira vista. Mas, refletindo sobre Kantor e "conquistas" posteriores, assim como com dilemas contemporâneos para o ser humano, posso entender por que Wilson tem a ver com uma certa poética da morte. Os outros posam, comparados a ele, de românticos, não entendem?
Voltando ao tema deste artigo: em que ponto posso considerar que minha postura diante do trabalho do norteamericano passa por subserviente? Ele me permitiu ver mais longe. Ele me permitiu criar nexos entre coisas que estavam soltas em mim. Ele me permitiu entender melhor tudo o que havia aprendido. Ele já faz parte da tradição. Ele não rompeu nada em mim. Ele conjugou. Nesse sentido, não me senti provocado. Ao contrário. Haverá algo de errado nisso? Não sei. Sei apenas que essa provocação, tentada por muitos, em mim parece não ter mais guarida. E quem sabe por isso mesmo consiga embarcar em sua canoa.
Venho passando por transformações radicais. Todo mundo sabe o quanto eu era limitado no palco. Agora faço papéis variados. Agora consigo decorar textos, passagens. Agora estou elencado numa peça por parte do Loureiro. Preciso, pela primeira vez, decorar ipsis litteris diálogos de outra pessoa. Tudo isso por que passo é transformador de forma que o Wilson não consegue ser. Mas com ele consigo enxergar mais longe. Sim, eu já disse isso, mas repito. É com ele, e com poucos outros, que consigo fazer meu tempo fazer algum sentido.
Agora há pouco entendi alguns nexos entre recursos dele e realidades vividas por mim. Agora mesmo pondero quanto a usar referências que só me dizem respeito e que por muitos podem passar por românticas. Mas o fato é que tento avançar com as próprias pernas. Onde isso vai me levar, não sei. Mas estou correndo.
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