Pular para o conteúdo principal

Fluxo (texto e direção: Thiago Ciccarino)

Com vistas a ver o Gui (Guilherme Gorski) representando, algo que não acompanhava há tempos, fui assistir à peça com ele nos Parlapas. Não tinha informação prévia, nenhuma, e nem me deixei levar pelo flyer à entrada da sala. Fui absolutamente ignorante de quê se tratava, e sem qualquer informação sobre o parceiro (Lino Camilo) em cena.
A peça apoia-se em texto, praticamente só em texto. À entrada, encontramos um sujeito (o ator Renato Jaques) que faz as vezes de equilibrista de sinal de trânsito. Tenta equilibrar algumas bolas, não consegue. Desiste, após algumas tentativas, e faz as vezes de equilibrar bolas inexistentes. Despede-se.
Entram dois homens de paletó e gravata que dialogam com parceiros imaginários, em diálogos entremeados. O Gui faz as vezes de pretendente a cargo. O Lino, ao relembrar evento em que teria atropelado alguém e não socorrido.
Encontram-se posteriormente num bar, o Gui em cadeira de rodas, o Lino como executivo bem-sucedido. O Lino tenta entabular conversa com o Gui, dizendo que o conhece de algum lugar. O Gui recusa. Mas o Lino insiste, num diálogo monológico aparentemente despreocupado, ele vai se casar, tem um emprego bom, ganha bem, etc., enquanto o Gui faz que é escritor e que vende livros na rua. O Lino acha graça.
Posteriormente, aparece o Lino subjugado por um Gui em situação inversa, e sofrendo muito.
Lino e Gui encontram-se posteriormente, o Lino já absolutamente à mercê, e vemos que ele luta por ter atenção do cadeirante. O diálogo trava-se na relação entre os dois. O diálogo avança, ágil e dramático, até que o Lino aparentemente se lembra: foi ele quem atropelou o Gui. O Gui não aceita. Aparentemente se nega a acreditar, até o momento em que admite, meio que zombando. Isso destrava energia cruel em Lino, que subjuga o cadeirante, agora em situação desconfortável, e que o joga no meio do palco, absolutamente indefeso, como que desconfiando de que ele é realmente cadeirante. O cadeirante luta amargamente se recompor, até que assume seu lugar na cadeira e tudo volta a ser o que era antes. Com um porém: ele nega que seja realmente aquele que foi atropelado - não, ele sempre foi cadeirante. O amargor da situação atinge Lino em cheio.
Os diálogos da peça aparecem de forma crua, rápida e rasteira. Convidam num primeiro momento a refletirmos, para depois nos invadirem em toda sua crueza. Os diálogos são ágeis e fazem-me navegar numa suposta verossimilhança - ou não. Gosto bastante do resultado, mesmo incomodado com os últimos espetáculos apoiados exclusivamente em texto. Este levou-me longe. Converso com o autor e com o Gui à saída, e lhe digo que por vezes eu me senti a tal ponto envolvido pelas possibilidades do texto que quase me meto a sair dele, a desembarcar da peça. Interessante, isso. Sugiro.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm...

4.48 Psicose (peça de Sarah Kane, tradução de Laerte Mello)

Há realmente algo de muito estranho e forte nesta última peça da Sarah Kane. E não é porque ela se matou em seguida, aos 28 anos. O assunto é claro desde o começo: uma depressão mortal. É como se fosse um testamento. Muitos lados da questão são expostos de forma esparsa - não sei se todos nem se isso afinal é possível -, e ao final da leitura a gente fica com um sabor amargo na boca. Dá vontade de reler, muito embora passe o desejo de decifrar. Isto torna-se secundário, aqui. Há algo que permanece, e creio que isso se deva à qualidade do que é feito e à integridade do que é dito. Pego por exemplo, já na primeira página: "corpo (...) contém uma verdade que ninguém nunca fala". É óbvio do que se trata: da extrapolação do fisiológico, de uma lógica de que por mais que se tente diagnosticar "nunca se fala". Abre-se uma porta à compreensão disso que não sabemos muito bem o que é. A força de "Lembre-se da luz e acredite na luz/ Um instante de claridade antes da ...

algo sobre wilson e kantor

difícil não se sentir provocado ao ler e refletir algo sobre o legado de bob wilson. digo ler e refletir porque nunca vi nada DELE. e aquilo que tem no youtube, embora bonitinho, deixa demais a desejar, após ter lido o livro do galizia (os processos criativos de robert wilson). o fato é que ele, assim como o kantor, deixam-me a impressão de não, nunca ter assistido a nada similar àquilo que eles há tempos já fizeram. como sentir um déja vu face um espetáculo em que nada acontece, e em que os vivos mais parecem mortos, e os mortos (bonecos) como que expressam a vida (kantor)? (se é que eu entendi bem). dele, do kantor, a gente acha algo mais convincente no youtube. mas do wilson, nada. ou muito pouco. bob wilson convenceu-me por exemplo de que não precisamos seguir a rota dos clássicos - e por clássicos me refiro a todos esses que vemos citados aqui e acolá, por gente culta ou nem tanto, como referidos à arte contemporânea. não, realmente não preciso - mas posso querer - ler sobre o fut...