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Café com Lucian Freud/ Um retrato do artista, de Geordie Greig

Lucian Freud talvez seja o pintor que mais me atrai dentre os figurativos, depois é claro de Bacon. Tenho alguns livros caros sobre ele, com reproduções interessantes de suas pinturas, e o jeito estranho com que vê o mundo me atrai tanto quanto o realismo me impede de embarcar, no teatro, em navegações outras que escapem da forma genérica com que o mundo vê a si mesmo.
O livro desse jornalista preenche um vácuo, dada a séria incompatibilidade deste neto do Freud, o Sigmund, com a imprensa e com a exposição de si mesmo perante a opinião pública - embora ele fosse, em caráter privado, um grande exibicionista. Confesso que o ar matreiro desse cara, que até o fim não abandonou um jeito atroz de lidar com o mundo, me surpreendeu. Pois eu não imaginava que esse cara, que aparentemente não pareceria dever nada a ninguém, fosse tão exacerbado em suas paixões e em seu amor à vida - justamente esse cara diante de cujas telas não podemos quase nunca deixar de ver a morte.
O próprio Greig esclarece que, tirando um artigo de 1954, em que Lucian explica algo de sua forma de ver a pintura e sua atividade incessante - artigo esse complementado por volta de 2000 -, o pintor nunca havia se disposto a ser biografado ou de alguma forma devassado publicamente.
Só por isso o livro já atrai bastante.
Mas ele não é focado essencialmente em pintura, que fique claro. Pois bem desde o começo já somos defrontados face o caráter inflexível, arrogante, cruel, admiravelmente bem-humorado, cínico, contraditório, paradoxal, desse mestre do figurativismo. Um mestre que se fez sozinho e que sozinho parece haver vivido neste mundo, apesar de suas centenas de mulheres - e alguns homens -, de seus variados filhos e filhas, de seu descompromisso com nada a não ser com sua pintura, atividade que fez até seus últimos momentos.
No livro, em geral, Lucian já aparece velho, mas ele é retratado também em suas peripécias de jovem, quando já compatibilizava seu trato com o que havia de mais sórdido (inclusive criminosos) e de chique (realeza, inclusive) que havia na capital londrina. É interessante ver como ele conciliava uma extrema liberdade de viver conforme os próprios critérios com a incessante fuga do público e com sua submissão àquilo que os outros poderiam pintar. Ler o livro é sentir o que é conviver com alguém que parecia realmente livre na vida, livre com seus critérios morais, livre com sua atividade, livre com sua incapacidade de perdoar, inclusive. Um homem completamente tomado por uma paixão desmedida por uma vida dedicada à pintura - sua única razão de viver.
Estou na metade do livro, nada parece contradizer o que já se foi e nada parece indicar que, ao longo da leitura, algo mais eu possa esperar. É interessante, mas foge daquilo que alguém exclusivamente ligado à sua pintura possa vir a desejar. Não que eu esteja dentre estes últimos, mas é bom avisar.

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