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Borrasca e A Pior das Intenções, de Mário Bortolotto: um paralelo

O próprio Mário Bortolotto confirma, ao explicar como teriam surgido ambas as peças, que elas têm origens e pontos em comum. Segundo ele 1, A Pior das Intenções surgiu de um diálogo entre homens, a que uma atriz teve acesso e que quis encenar. Borrasca, no caso, já era um diálogo entre homens. Já A Pior é - pois se tornou - um diálogo entre mulheres. Segundo o Mário, que acatou o pedido daquela atriz, ele mudou bastante coisa para que coubesse uma peça entre mulheres. Peça que se tornou a única apenas entre mulheres que ele fez, dentre suas mais de 50.
Pedi a ele que me passasse os originais das peças. Eu já havia assistido Borrasca seis vezes, mas por algum motivo eu sentia que algo havia ficado de fora - ou eu não havia entendido ou alguma lógica profunda havia passado batido. A Pior acaba de estrear, mas já a assisti duas vezes (no total, a assisti agora - março de 2014 - sete vezes). Ambas, Borrasca e A Pior, ocorrem num esquema de rodízio, a depender da disponibilidade dos atores e das atrizes. Unindo o útil ao interessante, pois o próprio Mário confirma que acaba sendo privilegiado ver suas peças encenadas de formas diferentes, com apostas diferentes por parte dos atores e atrizes.
Mas, aparte o fato de serem diálogos entre dois personagens, de ambas serem encenadas em esquema de rodízio e de ambas tratarem, cada uma de sua forma, do valor da amizade, eu passei a nutrir a esperança de que havia algo mais a uni-las, algo no conteúdo, algo na carga dramática e na direção que elas tomam enquanto são encenadas.
Esse foi o motivo deste texto. Vamos às peças.

Borrasca

Gabriel, escritor, e Diego, piloto de helicóptero, discutem a relação de ambos com Enzo Feitosa, amigo comum falecido recentemente. O diálogo se dá após a cremação de Enzo, à qual Gabriel não foi. Enzo, mulherengo e viciado em drogas as mais diversas, havia transado com Luciana, a mulher de Gabriel. Este não soube aceitar o fato. Rompeu com Luciana e entrou num afundamento progressivo, sem porém romper com Enzo. O título da peça se deve ao fato de estar chovendo torrencialmente quando Diego chegou da cremação. Mas não era uma tempestade, era uma borrasca. Mário faz ligação entre a passagem de Enzo e a Borrasca na vida - principalmente - de Gabriel. Eles saem juntos.

A Pior das Intenções

Bárbara, escritora, e Carla, amiga, discutem a relação entre ambas, após chegarem a uma cidadezinha em que Bárbara queria se esconder para terminar um livro. Carla quer curtir. Bárbara e Carla discutem a relação de amizade e quase rompem. Um ponto dramático da peça é quando Carla coloca Bárbara contra a parede, questionando a atividade de escrita desta última e o ar de superioridade que ela aparentemente tem em relação à amiga. O desenlace da provocação se dá quando Bárbara retoma o começo da relação entre ambas, com elas no colégio, e o fato de um dia Carla não ter aparecido com alegria na casa da primeira e esta ter ficado a tal ponto chocada com o fato que ele a motivou a escrever. Bárbara dessa forma abre o jogo e dispensa a postura de superioridade emocional da amiga. Elas retomam a conversa com amabilidade e ao final saem juntas.

Um paralelo

Há duas argumentações em particular com que irei comparar algo que, creio, de mais profundo exista na trama das duas peças.

No caso de Borrasca, uma linha argumentativa fundamental da trama ocorre quando, aos poucos, Gabriel diz que, antes de ser traído por Luciana com Enzo, ele assumia cuidados extremos para não fazer com que ambos se encontrassem. Ele afirma que estava "como um sonâmbulo" atrás dela. Com a traição de Enzo, então, Gabriel diz ter estado obcecado com a própria inércia. Segundo ele, que "não conseguia entender o ato de Enzo como uma traição", o ato da traição - ou ato limite, para ele - o enfurecia e ao mesmo tempo o comovia (o ato lhe fez muito mal e ao mesmo tempo muito bem). Colocado contra a parede por Diego, que disse que ele, Gabriel, racionaliza muito, ele responde que não, que ele sente demais. Aqui chega um ponto fundamental da argumentação, que prefiro transcrever. "Pra você chegar a tal ponto de racionalidade, é porque já extirpou todo o sentimento possível às custas de doses cavalares de angústia". É em seguida que Gabriel explica essa angústia: o estado de estar esperando, nu, que um raio caia em sua cabeça, como se tivesse recém saído de dentro da mulher amada. O argumento continua. Havendo um momento na vida em que uma pessoa tem a necessidade de ser aceita, há a situação dos eleitos, segundo Gabriel, "para serem ainda menos afortunados" (lembro-me aqui do status dos lavradores para Cioran, um dos heróis do Marião). Em seguida: "Podem entrar na fila e pegarem sua passagem só de ida. Não quero ver mais as suas caras inexpressivas por aqui". Pego-me aqui e penso: o que significaria isso? Passa-se boa parte da peça até que a argumentação é retomada. O que seria o Gabriel? Não um amargurado, senão um derrotado, que passou pela ilusória sensação agradável de estar com uma mulher e que, ao perceber que elas são miragens, encontra a bebida. "Mas vai uma hora que você vai precisar fugir. Os seus pecados estão gritando por socorro. E você vai correr desesperado". Vemos que a discussão entre os amigos em nome da amizade entre eles e Enzo fica para trás. Há algo mais profundo na psicologia do próprio Gabriel.

Esse algo, ao que parece, é que ele, Gabriel, ao optar por racionalizar seu sentimento, ampliou sem querer sua opção pela angústia. Essa angústia tornou-o uma espécie de "pecador", menos afortunado ainda que os eleitos (esses, que não usariam a razão). Daí o ponto crucial: "peguem suas passagens só de ida. Não quero ver mais suas caras inexpressivas por aqui". Tendo optado pela razão, Gabriel sem querer cedeu as portas à angústia, essa que fez com que caísse na bebida, e desta, no desespero.

Agora, A Pior das Intenções.

(continua)

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