Pular para o conteúdo principal

4

Lendo sobre Duchamp e Matisse deixo-me influenciar pelo rigor desses precursores sabendo porém que eles não necessariamente devem ser privilegiados como influência pelo CONTEÚDO a que eles dizem respeito - pois sinto (SINTO) que há mais relevância em outras carreiras, em outros percursos, em outras amizades. Pois sinto que em última instância a noção de amizade é aqui realmente importante. Não nos deixamos influenciar por aqueles de quem nos distanciamos por não nos darmos bem com eles - a gente se deixa influenciar por aqueles com que conversamos, rimos e curtimos a vida. Nesse sentido a ligação com quem desenvolve trabalhos de dança - no caso, da dança artesanal do Diogo Granato - ainda repercute em mim, embora tenha me desligado há bastante tempo de sua influência. Lembro-me por exemplo de quando fui a Guarulhos - GUARULHOS! - para apresentar uma performance com o Felipe e outras garotas. Cara, eu me perdi naquela ocasião, inclusive, tendo ido parar na Fernão Dias e precisado cortar Guarulhos por uma área que não conhecia até chegar naquele parque em cuja margem ficava aquele pequeno teatro. E apresentamos no parque! Foi um non-sense relativo, aquele, mas lembro que as pessoas que assistiram aplaudiram com certo fervor - e tudo havia ocorrido meio sem querer, venhamos e convenhamos. Há pouco contatei o Diogo e ele me disse de uma oficina de férias - que infelizmente terei de perder. Mas voltando à arte. Leio sobre Duchamp e Matisse, sim. Mas não é esse estender-se no entendimento de suas (poucas) obras que mais abre minha cabeça - são os escritos que causaram época, mas não a arte em si. O ato de levantar véus onde outros só viam mesmice, a capacidade de enxergar o mundo de outra forma, especulativa, em si. Isso por outro lado - a ausência dessa perspectiva - é o que sobremaneira me irrita nessas artes a que me dedico, ou a que quero me dedicar. O cinema - concordo com o César Ribeiro - poderia muito bem sair desse realismo acachapante, e só não o faz por questões de mercado, venhamos e convenhamos. Sendo que essas abordagens aparentemente contrárias à corrente de aplicar aos atores outras formas de reagir ao mundo não parecem fazer grande coisa. Não me sinto à vontade, por exemplo, ao ver O auto da compadecida do recém-falecido Suassuna. Essa opção pelo regionalismo me cansa sobremaneira - embora veja certa grandeza em ver o mundo de outra forma. Não é pela opção pelo folclorismo bem-conduzido que conseguiremos realmente mudar o mundo por dentro. Aliás, nem sei se existirá mesmo alguma forma de mudar esse mundo chato e irritante desses que parecem nascer tão lentamente que nem espaço deixam a quem quer viver em plenitude.

Outras leituras que desde já influenciam passam pelo caminho da dança - Louppe. Embora canse um pouco esse intróito à dança contemporânea e a várias de suas passagens, agita-se em mim a possibilidade de ver o mundo de forma mais sinestésica - algo de que sinto falta. Infelizmente, porem, acabei optando nos últimos dias por tentar destrinchar o mundo mais pela via da razão - algo que vem me levando bem longe, claro, embora saiba que não irá ser suficiente. Tanto que preciso de ver o mundo daquela forma, e para isso faço algum uso do vídeo - no caso, do premiado Pina, recém-comprado. A beleza do tratamento dessa homenagem abre os olhos e motiva-me mais a sair do corpo preso que ainda me comprime. Outra importante leitura - bem mais cabeça - é o sofregamente consumido Kott, sobre o bardo. Estranha essa Cosac, que parece sempre escolher para prefaciar seus caros livros gente que desmerece o próprio produto - algo que, porém, ajuda a circunscrever as leituras e a expandi-las - o que é bom. Ficar sabendo que o polonês não é assim tão referencial quanto muitos fazem crer é interessante, nesse sentido. Mas causa uma certa impressão de futilidade da compra - e isso me irrita, dado o sacrifício cometido para ir nessa direção. Voltando à arte, porém, é necessário falar algo sobre Matisse. O livro da Spurling anima-me sofregamente por vários motivos, mas especialmente pelo fato de utilizar as descrições para consumar o rigor do pintor já em suas vivências infantis. Ela poderia simplesmente citar certos fatos envolvendo a infância do francês - mas ela não se restringe a isso. Ao invés, e nisso ela me agrada muito, bastante mesmo, ela cria as conexões das idiossincrasias do pintor já consumado com as vivências de um ser que passou por caminhos bem particulares. Não à toa ela acaba me conduzindo à minha própria infância e à minha insistência em me lembrar de episódios que tanto me marcaram que aparecem em meus passos atuais - como por exemplo a maleza (erva daninha) que me dificultava o andar nos jardins em Santiago. Como aquilo fez parte de meu eu de outrora! A tanto isso se deu que deixou uma lacuna importante em minha sensibilidade - e creio que não poderei descansar até recriar os laços rompidos com uma vivência de felicidade que de vem em quando me invade. Hei de aproveitar a bio do Matisse, dessa forma, como poucas vezes antes.


Mas os caminhos continuam sendo trilhados e eles envolvem uma prática que infelizmente precisa dar conta de minha sensibilidade. Infelizmente pela dor envolvida. Dor de me sentir invadido pela personalidade alheia sem poder reagir a ponto de poder envolvê-la - como no ensaio para Notas de rodapé do Uivo - ainda hoje, quinta-feira. Pois a sutileza que busco exige uma queda a que terei de conduzir uma a uma as atrizes do grupo - e os atores, também, embora de outra forma. Irrita-me também bastante a mania, POR PARTE DE TODOS, de pedirem privilégios nas atuações ou em uma série de outras atividades sem que isso pudesse estar previsto por mim. Eu tendo a ceder, sempre. E por isso reajo com violência a todo momento - porque me sinto a tal ponto invadido que não consigo aguentar. Cansa-me a superficialidade desses que não entendem que precisam encontrar saídas quando elas não existem - por elas sempre existem em si. Não me agrada ter de adaptar criações aos atores/atrizes, estes TÊM DE SE VIRAR. Mas as exigências se avolumam e me irritam sobremaneira a ponto de atingirem minha própria vontade de criação. Mas terei de me adaptar. Nesse sentido, todas as dicas do César parecem sempre vir muito bem a calhar. Que ótimo. Hoje teve o lançamento de Hegel - ontem, na verdade. Até passou pela minha cabeça chegar preparado - mas para quê, para causar impressão? Disso não mais preciso - ao que parece em qualquer âmbito atual de minha vida. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm...

4.48 Psicose (peça de Sarah Kane, tradução de Laerte Mello)

Há realmente algo de muito estranho e forte nesta última peça da Sarah Kane. E não é porque ela se matou em seguida, aos 28 anos. O assunto é claro desde o começo: uma depressão mortal. É como se fosse um testamento. Muitos lados da questão são expostos de forma esparsa - não sei se todos nem se isso afinal é possível -, e ao final da leitura a gente fica com um sabor amargo na boca. Dá vontade de reler, muito embora passe o desejo de decifrar. Isto torna-se secundário, aqui. Há algo que permanece, e creio que isso se deva à qualidade do que é feito e à integridade do que é dito. Pego por exemplo, já na primeira página: "corpo (...) contém uma verdade que ninguém nunca fala". É óbvio do que se trata: da extrapolação do fisiológico, de uma lógica de que por mais que se tente diagnosticar "nunca se fala". Abre-se uma porta à compreensão disso que não sabemos muito bem o que é. A força de "Lembre-se da luz e acredite na luz/ Um instante de claridade antes da ...

(Em) Branco (de Patricia Kamis, dir. Roberto Alvim, Club Noir, 3as a 5as durante o mês de agosto)

Fui à estreia da segunda peça da leva de oito novos selecionados que o Alvim vai encenar municiado de sua leitura na noite anterior. Esperava ver algo relativamente tradicional e nutria um certo receio de déja vu. A atriz e os dois atores permanecem estáticos em quadrados iluminados por baixo. O caráter estático não se refere apenas ao corpo em contraponto com o rosto, mas também a este, mutável apenas (e repentinamente) por expressões fugazes. Os olhares permanecem fixos. O texto segue a ordem 1, 2, 3 (segundo o Alvim, emissores mas não sujeitos), que eu imaginava que iria entediar. As falas são ora fugazes ora propositalmente lentas e sua relação tem muito a ver com o tempo assumido em um e outro momento. Não irei entrar no âmago da peça. Nem irei reproduzir o que a própria autora, o dramaturgo Luciano Mazza e o próprio Alvim disseram no debate posterior a ela. Direi apenas que durante ela nossa sensibilidade é jogada de um lado a outro num contínuo aparentemente sem fim sem c...