Pular para o conteúdo principal

2001 (Kubrick) e Teatro (Mamet)

É sobremaneira irônico que 2001 tenha sido a data escolhida por Kubrick para ambientar seu divisor de águas do cinema contemporâneo. Pois até as pedras lembram ter sido 2001 o ano em que os Estados Unidos foram divididos em dois. Mas as (in?)felizes coincidências páram por aí. Pois não foi em 2001 que os Estados Unidos finalmente deixaram para trás o bipolarismo reinante até então - pois a União Soviética caiu, sim, mas o bipolarismo continuava - para embarcar - finalmente, dirão alguns - no dilema de ser o xerife e não ter como pagar a gasolina da viatura. Refiro-me - claro - à crise de 2008.

Agora, assistindo a 2001, reparo na posição da câmera como ponto de vista estático e dinâmico (personagem), ou seja, como ela pode - e naturalmente assume - papel protagônico, se deixarmos que a isso ela se refira. Por que digo isso? Porque em filmes de ação atuais a câmera como que "sofre" todos os efeitos da ação mas não aparece como protagonista, ou seja, não há SUJEITO que a ela se refira, enquanto, ao assistir 2001, percebo o quanto esse papel protagonizante fica claro quando nos metemos a refletir sobre aquilo que realmente acontece aos nossos olhos.

Mas agora volto ao por quê de 2001. Claro que o livro com entrevistas com Kubrick já colocam a questão em outros planos. Pois se 1000 diz algo para os árabes e 1001 o infinito, com 2001 poderíamos estar nessa base. Poderíamos, claro, embora eu teime em conectar as coisas mais pé no chão, na política de nosso dia a dia. Mas 2001 vai mais longe. Claro. Como percebo que vai mais longe do que a uma simples ideia de enredo com presença extraterrestre a questão do monolito nas primeiras cenas com os homens-macaco. Pois embora o monolito surja - após um interregno do conflito entre as hordas de homens-macaco -, após seu aparecimento (e aparente desaparecimento - nas cenas seguintes) há um corte abrupto - e parece, o monolito, referir-se a algo mais abstrato do que a um simples enredo, à aparição de algo que remeta a personagens. Creio, aqui comigo, sem refletir muito, que o monolito represente a razão, apolínea, exata, anódina, sem reentrâncias, que após seu aparecimento teria levado ao surgimento do poder. O homem-macaco fazendo uso do osso como ferramenta de submissão. A eterna imagem em câmera lenta do sujeito batendo e quebrando. Só uma apostazinha ridícula. Nisso, venhamos e convenhamos, ele se opõe ao ponto de vista costumeiro, que conduz a superação da animalidade à descoberta do fogo. Kubrick fica mais para trás, mais rasteiramente, propositadamente claro, apostando no poder como algo ainda mais pobre - e que não acabou requerendo maior trabalho do que simplesmente esse de conectar o tacape à morte dos animais, ao poder em si. Pois o fogo parece algo mais trabalhado - embora recentemente tenha havido quem apostou no fogo como o meio por excelência para melhorar a digestão e a alimentação desses que iriam se desenvolver posteriormente. (Noto haver certo momento na fita em que uns óbvios chimpanzés-criança brincam com um osso. Como que fazendo a ponte de uma coisa com a outra. Não eram atores, eram chimpanzés, claramente).

Aqui uma menção ao livro de entrevistas do Ciment, com o Kubrick. Lá mesmo Ciment comenta o monolito, e coincidência ou não chega a uma conclusão similar a esta minha, o que não tem nada demais mesmo. Mas reflito o quanto levei - quanto tempo, quantos filmes, quantas leituras - simplesmente para superar essa leitura realista de qualquer filme que tanto nos motiva a pensar o mundo da forma de sempre. Pois lembro-me de quando comprava livros de moda, de quando lia livros e revistas que sempre apelam aos sentimentos mais baixos - por exemplo, as revistas e livros sobre Hitler e Goebbels, que tanto me motivaram pelos motivos que também motivam (repetições óbvias, caros) os que são atualmente tão motivados a tanto. Pois o que há de mais baixo sempre motiva mais que o que está lá em cima, e que nada acima está, afinal de contas. Ocorre que agora Kubrick por 2001 me motiva por outras razões: pelo simples fato de que quero pensar e dialogar a respeito daquilo que mais relevância realmente tem, até porque o outro me entedia, essa vidinha nossa de cada dia, vidinha que nada deve ter de diversa da de gente de qualquer outra cidade enorme. Por isso que - agora indico, pela primeira vez -, que qualquer um de nós, de qualquer dessas cidades, está mais do que preparado para pensar sobre o todo sob o ponto de vista de Outro, esse outro que nos olha pela internet, google e os próprios supercomputadores da NSA. Algo que virou patética rememoração em seriados tão malhados como 24 horas - que vi, em alguns minutos, mais do que nunca antes. Como odeio essa tv de agora, mesmo desses seriados que dizem seriam tão bons...

Um outro aspecto a notar, porém. Em 2001, os monolitos não são simplesmente simbólicos ou abstratos. Eles, já de chofre quando o executivo da Terra vai visitar a Lua, são parte da trama. São o motivo para problemas, mistérios, até. Ou seja, há algo mais a preocupar quem assiste a fita - que, porra, tem 45 anos! Quase minha idade. Vejam só quão atrasado estou. rs.

Um outro aspecto tão ou mais interessante a ressaltar na fita - estranho chamar de fita - é a semelhança entre os ambientes na estação orbital com o que já vemos - e há alguns anos - nos escritórios de multinacionais - posso referir-me às do setor químico, não muito bem quisto pelos relativos ao meio-ambiente, pelo menos. O aspecto higienizante dos ambientes, e dos móveis, no caso poltronas que na época - estamos em 1968 - eram do tipo que ganhavam prêmios - desses designers tão ou mais badalados quanto os atuais - e como o tratamento entre os personagens aparenta essa simplicidade aparente daquele entre executivos atuais. Não que na época os executivos fossem diferentes - eu apenas comparo o que conheço de caso pensado, gente que me conhece há muitos anos e com os quais continuo trabalhando - e bem.

Preciso fazer também aqui uma remissão a um livro que venho lendo e cuja recepção pode causar engulhos entre nós - por aquilo a que diz respeito. No caso, refiro-me a Teatro, do David Mamet, em que ele explica por que considera teatro só aquele teatro mainstream que nós, do teatro, tanto mancomunamos. Pois Mamet explica como ficou o panorama do chamado off-broadway após a deslocação das pequenas companhias sei lá para onde, lá em Nova Iorque. Não fechemos nossos olhos, porém, pois vemos o mesmo agora aqui entre nós. Ele, Mamet, considera, en passant, ou não en passant, que esse chamado teatro off-broadway não existe mais. Nada teria a dizer a ninguém. É cruel, sei, mas cabe pensarmos. A história nunca precisa repetir-se, claro. E nós, aqui neste mundo que agora vem à tona, podemos bastante a dizer a respeito. Mas pensemos bem. Outro detalhe: já no começo Mamet refere-se aos mais de 50 livros que os estudantes de artes cênicas eram, à sua época, obrigados a ler ANTES das primeiras aulas. Imaginem fazer isso por aqui: sacrilégio, o professor é um tirano!!! ahahahah

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm...

4.48 Psicose (peça de Sarah Kane, tradução de Laerte Mello)

Há realmente algo de muito estranho e forte nesta última peça da Sarah Kane. E não é porque ela se matou em seguida, aos 28 anos. O assunto é claro desde o começo: uma depressão mortal. É como se fosse um testamento. Muitos lados da questão são expostos de forma esparsa - não sei se todos nem se isso afinal é possível -, e ao final da leitura a gente fica com um sabor amargo na boca. Dá vontade de reler, muito embora passe o desejo de decifrar. Isto torna-se secundário, aqui. Há algo que permanece, e creio que isso se deva à qualidade do que é feito e à integridade do que é dito. Pego por exemplo, já na primeira página: "corpo (...) contém uma verdade que ninguém nunca fala". É óbvio do que se trata: da extrapolação do fisiológico, de uma lógica de que por mais que se tente diagnosticar "nunca se fala". Abre-se uma porta à compreensão disso que não sabemos muito bem o que é. A força de "Lembre-se da luz e acredite na luz/ Um instante de claridade antes da ...

29/7 (a partir de 28) - Teatro e artes

Ontem, ao ouvir o Gerald, quanto a como coloca a musica (depois), e depois ainda, ao ver uma musica passando pela partitura (e me deixando uma impressao de impossibilidade de traducao em algo mais), percebi que a arte finalmente havia voltado a assumir um lugar inextrincavel em mim. Finalmente percebi novamente que ela existia em mim para algo alem da minha vida, e percebi tambem que qualquer motivacao extemporanea (tipo celebridade, valor em si, razao) para ela era, alem de inutil, irrelevante. Percebi isso e na hora me libertei de coisas ao meu redor imensas, que me faziam sentir amargurado por um peso muito grande. Como se eu DEVESSE atribuir algo aa minha vida por me sentir pequeno demais para tudo o que investi nela. Isso fez com que eu tambem entendesse que, quando QUALQUER COISA for bem feita, ja EE arte em si, e por isso mesmo entendi o valor da edicao no cinema, da atuacao, da luz e tudo mais. Tudo adquiriu de repente um valor maior, para alem da vida inclusive.