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Método? 4

Imagino que haja quem apenas imagina onde quero chegar com minhas observações, retiradas de comentários sobre escritos de Grotowski. Para sair disso, basta ler a transcrição que faço a seguir. É uma página de livro, mas é autoexplicativa.
"Quero lhes dar um exemplo de sede da montagem na percepção do espectador. Tomenos o Príncipe Constante, de Ryszard Cieslak, no Teatro Laboratório. Antes de encontrar-se no trabalho sobre o papel com os seus partners no espetáculo, por meses e meses Cieslak tinha trabalhado só comigo. Nada no seu trabalho era ligado ao martírio que, no drama de Calderón/Slowacki, é o tema do personagem do Príncipe Constante. Todo o rio da vida no ator era ligado a uma recordação muito distante de toda obscuridade, de todo sofrimento. Os seus longos monólogos eram ligados às ações que pertenciam àquela recordação concreta da sua vida, às menores ações e aos impulsos físicos e vocais daquele momento rememorado. Era um momento da sua vida relativamente breve - digamos algumas dezenas de minutos, quando era adolescente e teve a sua primeira grande, enorme experiência amorosa. Isso se referia àquele tipo de amor que, como pode acontecer só na adolescência, leva toda a sua sensualidade, tudo aquilo que é carnal mas, ao mesmo tempo, detrás daquilo, algo de totalmente diferente que não é carnal ou que é carnal de um outro modo e que é muito mais como uma prece. É como se entre esses dois aspectos, aparecesse uma ponte que é uma prece carnal. O momento de que falo era portanto isento de toda conotação tenebrosa, era como se esse adolescente rememorado se liberasse com o seu corpo do corpo mesmo, como se se liberasse - passo a passo - do peso do corpo, de cada aspecto doloroso. E, sobre o rio dos menores impulsos e ações ligados a essa recordação, o ator colocou os monólogos do Príncipe Constante.
Sim, o ciclo das associações pessoais do ator pode ser uma coisa e a lógica que aparece na percepção do espectador, uma outra. Mas entre essas duas coisas diferentes deve existir uma relação real, uma só profunda raiz, mesmo se estiver bem escondida. De outro modo, tudo se torna casual, fortuito. No caso do trabalho com Ryzsard Cieslak sobre o Príncipe Constante, essa raiz era ligada à nossa leitura - ainda antes de começar o trabalho - do Cântico Espiritual, de João da Cruz (que se religa à tradição bíblica do Cântico dos Cânticos). Nessa referência escondida, a relação entre a alma e o Verdadeiro - ou, se quiserem, entre Homem e Deus - é a relação da Amada com o Amado. Foi isso que levou Cieslak à recordação de uma experiência de amor tão única que se tornava uma prece carnal.
Mas o conteúdo do drama de Calderón/Slowacki, a lógica do texto, a estrutura do espetáculo em torno dele e em relação a ele, os elementos narrativos e os outros personagens do drama sugeriam que fosse um prisioneiro e um mártir que tentam quebrar, e que se recusa a submeter-se a leis que não aceita. E através dessa agonia do martírio ele atinge o ápice.
Esta era a história para o espectador, mas não para o ator. Os outros personagens em torno dele, vestidos como procuradores de um tribunal militar, se ligavam à história contemporânea da Polônia. Mas esta alusão específica não era a chave. O fundamento da montagem era a narração (em torno do ator que interpretava o Príncipe Constante) que criava a história de um mártir: a encenação, a estrutura do texto escrito e, o que era certamente mais importante, as ações dos outros atores, os quais, por sua parte, tinham motivos próprios. Ninguém procurava interpretar, por exemplo, o procurador militar: cada um interpretava seus casos, questões ligadas à sua vida, estritamente estruturadas e inseridas na forma daquela história "segundo Calderón/Slowacki".
Então, onde apareceu o espetáculo?
Em um certo sentido essa totalidade (a montagem) apareceu não no palco, mas na percepção do espectador. Sede da montagem era a percepção do espectador. Aquilo que o espectador captava era a montagem querida, enquanto aquilo que os atores faziam é uma outra história".

Note-se que, no começo, Grotowski insiste em dizer que essa explicação se liga à sede da montagem na percepção do espectador. Note-se a expressão sede da montagem. Pois posteriormente Grotowski vai falar outra coisa a esse respeito (a sede da montagem nos atuantes, buscando uma arte como veículo. Mas aí a história é outra, e por enquanto não me interessa. É isso.

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