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A Dama do Mar (de Henrik Ibsen, adaptação Susan Sontag, tradução Fábio Fonseca de Melo, revisão e adaptação Leila Guenther) (peça encenada por Bob Wilson)

O livrinho aqui resenhado estava sendo vendido na ocasião da encenação das peças por Bob Wilson, no Sesc Pinheiros, entre junho e julho deste ano. Custou apenas 12 reais e é da N-1 Edições (n-1publications.org). É bilíngue.
A peça, adaptada por Sontag, transcorre em 17 cenas, de uma das quais eu não me lembro (a 14a). A peça segue o livrinho ipsis litteris, ou quase.
A trama é simples: uma garota (Ellida) casa-se com um homem mais velho (Hartwig), que tem duas filhas do primeiro casamento (que não gostam dela). Ellida narra a história de uma sereia-foca que se desfaz da pele e que é raptada por um homem. Ela consegue sua pele de volta e retorna ao mar. Ellida como que se imagina uma mulher do mar, a dama do mar. Ela é puxada para fora do casamento por um estranho. Ela quer ser livre, Hartwig a deixa escolher, ela escolhe voltar ao casamento e renunciar àquilo que o coração lhe diz. Uma das filhas casa-se com um professor mais velho. Fim.
O livrinho, super bem cuidado, não exagera na pomposidade que uma ocasião dessas - a peça - poderia requerer. Cada cena é publicada em páginas separadas, mas sem ilustrações ou nada mais. A peça está lá.
Circunda o texto uma certa estranheza. Hartwig não aparece sempre como personagem, mas às vezes como narrador (bem na primeira cena, por exemplo). No texto, as indicações dos personagens presentes já estão dadas, e Wilson, na peça, caracteriza-as quase sempre de forma exata, tal qual no texto. O mesmo ocorre (a aparição em terceira pessoa) com Ellida. Esse distanciamento faz-nos perceber a peça mais como a narração de um mito/lenda do que como o transcorrer de uma história à la realismo. (Percebo aqui uma certa dificuldade em compreender o texto retirado da peça que vi duas vezes). Hilde e Bolette, as filhas do primeiro casamento, surgem quase sempre (menos na 11a cena) em knee-plays (cenas-joelho, assim traduzidas por Galizia em seu livro Os Processos Criativos de Bob Wilson, pela Perspectiva, já resenhado aqui neste blog). As cenas-joelho servem como articulação entre as outras, normalmente mais longas e mais descritivas do real embate entre os personagens. Não que as cenas-joelho não sejam representativas - elas mais cumprem um papel de contraponto, em última instância.
Há, quase sempre, na peça adaptada por Sontag, e na peça apresentada por Wilson, referências ao mar, seja enquanto indicações (Ellida sai do mar, encharcada), seja enquanto sons (gaivotas, o ruído das ondas, o ruído estrondoso do bater do mar nas rochas), seja enquanto luzes (em que o céu assume tons diferenciados a depender da dramaticidade do texto). Há vezes em que o céu aparece com uma gradação de uma cor específica, outras em que as gradações são entremeadas por luzes brancas ofuscantes que dividem e estouram o espaço. Essas indicações são sugeridas pelo texto de Sontag, na medida em que as distâncias entre os personagens, que quase nunca dialogam realmente, promovem um deslocamento quase obrigatório face a sua solidão, à solidão das personagens entre si. Repare-se que até as cenas-joelho não há UM diálogo entre os personagens principais. Só muito depois surge o diálogo entre Hartwig e o professor (de nome Arnholm) (cena oito). Na cena nove, Bolette, a filha mais velha, conversa com Arnholm apenas para expressar seu sentimento de inadequação, e logo depois as irmãs 'conversam' com Ellida. Conversam em termos, porque ela tenta aproximar-se e elas apenas se distanciam, sem sequer referirem-se a ela. Hartwig também está na cena - é apenas ele que conversa com Ellida. Um grande poema - cena doze - divide a peça em dois. Esse poema é pronunciado por Hilde - na peça, representada de forma extraordinária por Bete Coelho - uma representação que abre os olhos de todos - seja qual for a encenação. Acontece então a união do professor - interpretado por Luiz Damasceno, que arranca risos frequentes da plateia - com Bolette. Uma cena em que o isolamento é ainda mais apresentado como inelutável é essa - cena quinze - em que Ellida representa o seu 'diálogo' com o Estrangeiro, papel mudo, que na peça aparece na forma de um rapaz alto, não propriamente musculoso, longuilíneo, que capta nosso olhar de forma inelutável. Aparece Hartwig, o conflito é anunciado, e jogado para depois, sem se saber aonde ele pode levar. A próxima cena é o diálogo em que Ellida é colocada face à liberdade - em trechos que ficam na memória, com frases formidáveis que expressam verdades interessantíssimas -, pela qual ela opta para voltar atrás - ficar com Hartwig. O diálogo final, na cena posterior, apresenta o casal, que na peça não se olham e cujas falas às vezes remetem a olhares distantes, às vezes a referências entre eles. Somos apresentados ao dilema fundamental de todo casal, preso entre si.
Por não serem apresentados de forma pomposa, os capítulos do livro - que originam as cenas da peça - mantêm uma simplicidade que nos permitem captar a verdade última do que é dito - e que é apresentado na peça. Fica a impressão de solidões não compartilhadas, de destinos assumidos pelos personagens mas de infelicidades calculadas. Bolette prende-se para poder sair pelo mundo sem responsabilidades. Ellida fica com Hartwig para manter um casamento, uma vida, que a retira finalmente do seu destino - o mar, para a dama do mar.

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