Pular para o conteúdo principal

"A Empresa (A Possessa)", peça de Hilda Hilst, em Teatro Completo, de Hilda Hilst

Hilda tem sido há alguns anos uma incógnita para mim. Vez ou outro me topo com alguma fã incondicional, com toda ou quase toda sua obra em casa, e também vez ou outra vejo alguém falando dela em algum lugar, ou algum texto e peça dela sendo encenados. Hoje mesmo parece que tem uma sendo feita na cidade, pelo que vi.
Mas nunca a havia lido. Digo, em teatro - nem em poesia, de que não tenho mesmo nada dela.
Tive porém, há algumas semanas, o azar de começar a ler suas peças pela introdução da Renata Pallottini, que me desanimou fortemente por situá-la em um dos aspectos mais óbvios dessa sua produção, que é o fato de as peças terem sido escritas de 67 a 69, em pleno regime militar, e por isso ter me causado a impressão - a Pallottini até toca a respeito - de essas peças serem sobremaneira datadas, ou seja, aparentemente sem muito interesse além disso. O azar foi que comecei a ler esta primeira - A Empresa - no ônibus e, somado a essa impressão, permanecido parado nisso mesmo, sem motivação para ler além disso.
Mas felizmente peguei a dita cuja novamente e, melhor, além de lê-la de forma mais ou menos apressada, ter tido umas horas para pegá-la novamente, para lê-la com maior detimento. E merece. Pelo menos a primeira peça, esta, merece.
América é uma garota que pensa por si só. Que divulga o que pensa. Mas que vive numa espécie de empresa-reformatório-igreja, que tenta e consegue enquadrá-la. Vemos América tendo sua mensagem deturpada, sendo indicada para uma função de dedo-duro, a mensagem sendo aproveitada pela instituição e depois julgada para averiguação de se ela mesmo merece permanecer como está e onde está sem ser apagada. O final é previsível.
Mas o jeito da escrita, as mensagens subliminares - especialmente na mensagem que ela, América, tem lá no começo da peça e que divulga às colegas e ao Monsenhor -, a posterior loucura dela, com sua aceitação da apalermada mensagem de uma sociedade anestesiada pela religião, e tudo o mais prendem bastante o interesse. Parece haver sempre nas linhas da autora algo mais a ser dito, e que é dito sem rodeios, ou subliminarmente de forma ainda mais atroz do que poderia ser dito se tudo fosse tratado de forma mais realista, e isso pega pesado no leitor. Um detalhe importante, já na primeira rubrica da peça, é o fato de Hilst proibir que essa peça fosse encenada de forma realista. Isso chama bastante a atenção.
Essa é apenas a primeira das várias do livro. As outras tratarei nos próximos dias ou semanas.
Aproveito: voltei a pedir livros às editoras, e tenho tido bastante sucesso.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm...

Diário Baldio, 7/8/2011, Tusp, BarracãoTeatro

Estréia. Platéia pela metade, o espetáculo começa com sons de rua. Aparece aos poucos Lady, o travesti criação de Gabriel Bodstein. Entramos em seu universo idealizado, de paraíso em meio ao lixo. Não sinto muita empatia. Surge Cotoco (Esio Magalhães). Um ser deformado. Só dá para ver um de seus olhos, e mesmo assim com dificuldade. Não fala, grunhe. Não mexe os braços, os desloca desajeitadamente. Não anda, escorrega com os cotos, com os joelhos. Trava-se o contato. No começo uma distância entre Lady e Cotoco. Aos poucos, Lady embarca na expressividade dos recursos do meio-animal. Que de meio-animal não tem nada. Sabe tocar flauta. Anda de skate. Mas mantém com o mundo o olhar de uma criança. Sempre algo a descobrir, o espanto, a empatia com qualquer detalhezinho do mundo. Sinto-me desfalecer ao me identificar com o ser que conquista a todos com sua inteligência, mascarada por uma aparência que faz jus contudo à sua condição de excluído. Cotoco rouba a cena. Poderia estender-me l...

4.48 Psicose (peça de Sarah Kane, tradução de Laerte Mello)

Há realmente algo de muito estranho e forte nesta última peça da Sarah Kane. E não é porque ela se matou em seguida, aos 28 anos. O assunto é claro desde o começo: uma depressão mortal. É como se fosse um testamento. Muitos lados da questão são expostos de forma esparsa - não sei se todos nem se isso afinal é possível -, e ao final da leitura a gente fica com um sabor amargo na boca. Dá vontade de reler, muito embora passe o desejo de decifrar. Isto torna-se secundário, aqui. Há algo que permanece, e creio que isso se deva à qualidade do que é feito e à integridade do que é dito. Pego por exemplo, já na primeira página: "corpo (...) contém uma verdade que ninguém nunca fala". É óbvio do que se trata: da extrapolação do fisiológico, de uma lógica de que por mais que se tente diagnosticar "nunca se fala". Abre-se uma porta à compreensão disso que não sabemos muito bem o que é. A força de "Lembre-se da luz e acredite na luz/ Um instante de claridade antes da ...