Pular para o conteúdo principal

Cena Nilcia

Matador (M)


Advogada (A)



A - De que forma você a matou?



M - Com uma faca.



A - Como foi, conte detalhes.



M - Peguei uma faca na cozinha e quando ela se distraiu enfiei a faca na nuca. Morreu na hora.



A - Imagino que vocês tenham discutido.



M - Nada.



A - Como assim? Não houve luta?



M - Não sou de brigar. Eu já tinha confirmado. Ela deu para outro cara e pronto. Tinha que morrer. Afinal ela era minha.



A - Imagino que você tenha ficado um pouco nervoso.



M - Nada. Matei e pronto.



A - Você vai ter que mudar isso.



M - Como assim?



A - Vai ter que dizer que brigaram e perdeu a razão.



M - Fiquei meio louco, é isso?



A - Isso.



M - Mas não ficaram marcas de luta.



A - Isso é de menos.



M - Tive uma ideia. Eu posso dizer que a dominei facilmente.



A - Isso não.



M - Lutamos, então?



A - Lutaram.



M - Mas ela não ficou com nenhuma marca.



A - Você diz que não lutaram muito fortemente.



M - Tudo bem.



A - E em seguida?



M - Eu tinha que me livrar do corpo.



A - Como você fez?



M - Peguei outra faca mais afiada e cortei a cabeça fora.



A - Foi difícil, imagino.



M - Só quebrar a coluna. Tive que pular em cima. Ela era meio fortinha.



A - Foi difícil, então.



M - Não.



A - E depois?



M - Peguei uns sacos de lixo, meu, ainda bem que eu tinha comprado, peguei um deles e coloquei a cabeça. Fiquei encucado.



A - Por quê?



M - Ela não fez cara de dor. Parecia que morreu dormindo.



A - E o que você fez com a cabeça?



M - Coloquei na geladeira. Coloquei de lado porque se não não iria caber.



A - Quando os policiais chegaram, a cabeça estava lá?



M - Foi.



A - (pensa) Voltando à sua esposa. Como ela te traiu? Com quem?



M - Com quem você acha que ela me traiu?



A - Meu caro matador, sou eu quem pergunto. Não estou aqui para servir de consolo. Ou você se esqueceu de nosso trato? Não estou aqui, querido, por amor à arte. Ninguém sai de casa por amor à arte. Ou você sairia?



M - Não. Mas você não tem curiosidade?



A - Ter, até tenho. Mas não estou aqui para me deliciar com detalhes mórbidos. A verdade é algo que bem poucos querem saber. Nosso negócio é maquiá-la para torná-la aceitável aos olhos dos jurados. Algo que convença, que mostre que até o nascer do sol depende do olhar de quem aprecia.



M - Tá bom, então. Ela me traiu com o zelador do prédio.



A - (esconde o riso) É mesmo? Que estranho...



M - Pode rir. Eu sabia.



A - Desculpe. Nada contra zeladores, claro.



M - O China, como é chamado, até que é gente fina. Mas pisou onde não devia. Mas a culpa maior é dela, da vadia.



A - Vocês tinham problemas sexuais?



M - Nada, eu mandava todo dia. Era ela que queria ser tratada como igual. Como se fizesse por merecer. Meu, ela vagabundeava com o meu dinheiro, eu sustentava todas as bobagens que ela comprava e dizia. Vai à merda.



A - Você se sentiu diminuído?



M - Não é bem isso. Veja, eu estudei nas melhores escolas, sempre tive amigos influentes, sempre almocei e jantei em restaurantes caros, nunca me faltou nada. Apesar disso, sempre ralei. Você acha que uma vida de executivo é mole? Nada, é viagem para lá, viagem para cá, celular no meio da noite, gringos enchendo o saco de longe e pessoalmente. É foda.



A - Ela aproveitou uma oportunidade.



M - Ela sempre quis me destruir. Porra, eu que tirei ela daqueles moquifos onde ela morava. Dei do bom e do melhor. Aí ela me fode com o zelador, com o zelador! Caralho, todo mundo ri da minha cara.



A - Isso era motivo para matar?



M - E não é?



A - A gente precisa mudar isso.



M - Como assim?



A - Você não pode aparecer assim em público. O homem chauvinista que possui a mulher como mercadoria.



M - E eu lá sei o que é ser chauvinista?



A - Não importa. Você sempre foi um homem dedicado, certo?



M - Sim, até demais.



A - Nunca deixou faltar nada em casa.



M - Nunca.



A - Então, vamos ver, executivo dedicado atingido pela traição do maior amor da infância.



M - Maior amor da infância? AHAHAHA.



A - Cala a boca. Você quer sair daqui ou não?



M - Tá bom, mas tá engraçado.



A - Vamos vender o peixe de que a tua esposa era a mulher dos teus sonhos. Que você, após muito ralar e conquistar, conseguiu trazê-la para o conforto do seu lar. Mas que ela era uma fruta podre. Uma mulher fingida, aproveitadora, que insistia em desmerecer você e te jogar lá para baixo. E que você, num ato de descontrole, de desespero, acabou por matar. Meio sem querer.



M - É uma boa. Vamos nessa. Mas como é que a gente explica o esquartejamento?



A - Podemos alegar que você entrou num transe psicótico. Que pensava desesperadamente no peso que traria o assassinato para teus pais. Para teus amigos. Para tua carreira, que tão arduamente você conquistou. E que nesse transe você fez o que em sã consciência não faria. Que você perdeu o controle.



M - Como um zumbi.



A - É, como se fosse dominado por impulsos incontroláveis.



M - Boa. Legal, tamos indo bem. Que mais?



A - Você tinha amante?



M - Ter, eu tinha.



A - Isso não pode aparecer de forma alguma.



M - Tudo bem, a garota não vai querer aparecer mesmo. Nessas horas todo mundo quer distância. (pensando) A não ser que queira aparecer. Mas vai saber.



A - Você tinha bens escondidos de tua mulher?



M - Ah, sempre tive. Vai que ela me largava, eu tinha que ter uma reserva escondida.



A - Isso também não pode aparecer. Não pode dar a impressão de você ser um sujeito falso, fingido.



M - Tudo bem, ninguém sabe disso mesmo.



A - Ninguém?



M - Ninguém. Eu sempre fui muito discreto. Os documentos nem ficavam em casa. Estão guardados num banco, no qual só eu tenho a senha. Nem chave existe.



A - Ótimo.



M - Você manda bem, hein, doutora?



A - Obrigada. Eu sempre tento fazer o meu melhor. (começa a redigir as alegações)



M - Você teria um cigarro?



A - Claro!



M - Obrigado. (pausa) Veja (como quem não quer nada), você é casada?



A - Eu não acredito nesse tipo de coisa.



M - Mas e namorado, tem?



A - Tenho, claro.



M - O que ele faz? Desculpe se sou importuno.



A - Não, tudo bem. Ele é advogado também. Atua em direito comercial. Que dá mais dinheiro ainda. A gente sempre soube o que queria.



M - Dinheiro.



A - O que mais? O mundo não gira à toa. Tem sempre quem pague. Eu me vejo como uma espécie de pedágio. Passa quem paga. Quem não tem, bom, esse espere pela justiça. Que não tarda. Ou que quando tarda, ah, sei lá, danem-se os pobres que de pobres de espírito já estamos cheios. AHAHAHA



M - Boa. O mundo tá cheio de perdedores, é certo. Em toda esquina tem um. Presa fácil para nós.



A - É. (pergunta) Você tem filhos?



M - Vixe me salve disso.



A - Se você tivesse um ajudaria bastante. Ele precisa de você, essas coisas.



M - Será que posso arranjar um?



A - Vocês estavam pensando em adotar?



M - Ela até pensou nisso, mas como tudo nela mudou de ideia de repente.



A - Vocês chegaram a consultar instituições nesse sentido?



M - Olha só, sim, a gente foi numa delas.



A - O depoimento desse tipo de gente sempre ajuda. Passa imagem de credibilidade. De espírito bondoso. AHAHAHA



M - AHAHAHAHA. Ah, vai, bondoso eu sou.



A - Tá se vendo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm

(Em) Branco (de Patricia Kamis, dir. Roberto Alvim, Club Noir, 3as a 5as durante o mês de agosto)

Fui à estreia da segunda peça da leva de oito novos selecionados que o Alvim vai encenar municiado de sua leitura na noite anterior. Esperava ver algo relativamente tradicional e nutria um certo receio de déja vu. A atriz e os dois atores permanecem estáticos em quadrados iluminados por baixo. O caráter estático não se refere apenas ao corpo em contraponto com o rosto, mas também a este, mutável apenas (e repentinamente) por expressões fugazes. Os olhares permanecem fixos. O texto segue a ordem 1, 2, 3 (segundo o Alvim, emissores mas não sujeitos), que eu imaginava que iria entediar. As falas são ora fugazes ora propositalmente lentas e sua relação tem muito a ver com o tempo assumido em um e outro momento. Não irei entrar no âmago da peça. Nem irei reproduzir o que a própria autora, o dramaturgo Luciano Mazza e o próprio Alvim disseram no debate posterior a ela. Direi apenas que durante ela nossa sensibilidade é jogada de um lado a outro num contínuo aparentemente sem fim sem c