Pular para o conteúdo principal

Ato de Comunhão



Assisti essa peça no festival Cena Brasil Internacional 2012. Tudo é demarcado no palco. Nota-se de antemão que tudo que está no palco tem uma função bem específica. Gilberto Gawronski surge do fim do palco destruindo a ilusão do espetáculo. Embarca-se no espetáculo por meio de uma confissão, em primeira pessoa, em que a vida é o que está sendo ressaltado. A vida de um menino de 8 anos, seu aniversário, seu sentido de solidão em meio a corridas de videogame. O tom torna-se mortiço ao entrarmos no universo do enterro da mãe do menino. Tudo torna-se mais cru, menos comedido, as ironias vicejam aqui e acolá, somos defrontados face um homem. Inseguro, ao que parece, mas um homem. Não mais um menino, embora deste restem traços. Quando invade o espetáculo, sem pedir licença, o universo da internet. Os encontros, a crueza do sexo, a necessidade de catalogação, o impulso ao excesso. Quando começa a trama real. O homem que quer ser comido pelo outro. Tudo acontece sem muito aviso. A rotina do canibal é esmiuçada em detalhes (perdão pelo pleonasmo) enquanto ele tenta entrar na mente do outro, daquele que será comido - e que é comido. Tudo transcorre como num banquete qualquer. O ato de comunhão torna-se real.


O cenário minimalista dá pouca margem à imaginação. Tudo está dado de antemão e não se cria ilusionismo algum - muito provavelmente de propósito. A cadeira de barbeiro destaca-se enquanto tribuna do canibal, que aos poucos ganha terreno e forma. Os recursos de video e iluminação ressaltam a trama que, por ser muito chapada, não cria muita empatia. Confundindo-se a ficção com o real, espera-se mais. A fumaça atrapalha, não cria efeito algum. As referências a Bacon são claras, mas nem por isso sempre bem-sucedidas (bem-sucedida é a prisão com luzes feita ao canibal, referência à prisão real a que o canibal está sujeito). O espetáculo parece algo chapado, sem tons, sem muita margem à dúvida, ao questionamento existencial que Gawronski diz que o espetáculo levanta. Tudo é mostrado tão ao pé da letra que torna-se quase banal. Mas o espetáculo dá um tom. Um tom meio incômodo porque superficial, mas um tom.

O espetáculo, pelo que o flyer diz, recebeu críticas elogiosas de vários críticos cariocas. Cometo o sacrilégio de discordar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm...

Diário Baldio, 7/8/2011, Tusp, BarracãoTeatro

Estréia. Platéia pela metade, o espetáculo começa com sons de rua. Aparece aos poucos Lady, o travesti criação de Gabriel Bodstein. Entramos em seu universo idealizado, de paraíso em meio ao lixo. Não sinto muita empatia. Surge Cotoco (Esio Magalhães). Um ser deformado. Só dá para ver um de seus olhos, e mesmo assim com dificuldade. Não fala, grunhe. Não mexe os braços, os desloca desajeitadamente. Não anda, escorrega com os cotos, com os joelhos. Trava-se o contato. No começo uma distância entre Lady e Cotoco. Aos poucos, Lady embarca na expressividade dos recursos do meio-animal. Que de meio-animal não tem nada. Sabe tocar flauta. Anda de skate. Mas mantém com o mundo o olhar de uma criança. Sempre algo a descobrir, o espanto, a empatia com qualquer detalhezinho do mundo. Sinto-me desfalecer ao me identificar com o ser que conquista a todos com sua inteligência, mascarada por uma aparência que faz jus contudo à sua condição de excluído. Cotoco rouba a cena. Poderia estender-me l...

4.48 Psicose (peça de Sarah Kane, tradução de Laerte Mello)

Há realmente algo de muito estranho e forte nesta última peça da Sarah Kane. E não é porque ela se matou em seguida, aos 28 anos. O assunto é claro desde o começo: uma depressão mortal. É como se fosse um testamento. Muitos lados da questão são expostos de forma esparsa - não sei se todos nem se isso afinal é possível -, e ao final da leitura a gente fica com um sabor amargo na boca. Dá vontade de reler, muito embora passe o desejo de decifrar. Isto torna-se secundário, aqui. Há algo que permanece, e creio que isso se deva à qualidade do que é feito e à integridade do que é dito. Pego por exemplo, já na primeira página: "corpo (...) contém uma verdade que ninguém nunca fala". É óbvio do que se trata: da extrapolação do fisiológico, de uma lógica de que por mais que se tente diagnosticar "nunca se fala". Abre-se uma porta à compreensão disso que não sabemos muito bem o que é. A força de "Lembre-se da luz e acredite na luz/ Um instante de claridade antes da ...