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Para um teatro pobre, de Jerzy Grotowski (Teatro Caleidoscópio e Dulcina Editora)

Quando começou minha fixação por teatro, em suas mais variadas formas, eu me lembro de pesquisar as livrarias por toda e qualquer tradição do teatro grego, em primeiro lugar. Depois vieram os livros ensaísticos sobre teatro. Depois ou simultaneamente vieram as peças mais modernas e contemporâneas, dos mais variados países. Depois vieram os livros sobre encenadores, dentre eles Gerald Thomas, Bob Wilson, Tadeuz Kantor e Meierhold, dentre outros. Craig e outros vieram de roldão.
Já quando comecei a frequentar grupos ou saraus as leituras tornaram-se diferentes. Stanislavski, Adler, Strassberg e muitos outros começaram a aparecer. Mas eles não diziam muito para mim pelo simples fato de que eu não havia ainda pisado o palco como ator. Quando isto começou a acontecer, os livros desse tipo passaram a fazer finalmente sentido, e os trabalhos de encenadores passaram a ficar meio que para segundo plano. O que não significa que eu os tirara da minha frente. É que havia algo muito mais carnal para ler. Algo que aguçava agora minha sensibilidade de outra forma.
Foi após atuar por alguns meses e ter contato com mais e mais gente - muitas garotas, principalmente - que eu comecei a tocar um projeto próprio - o grupo Garotas do Contrera (e Cia., acrescentei depois) e, mês após mês, me deparar com questões que diziam respeito àquilo que o teatro realmente me possibilitava, agora sob o prisma da direção e mais importante da direção de atores. Eu começara a criar cenas de forma desbragada e tinha atrizes e atores à minha disposição para torná-las vivas.
O processo de dirigir o meu grupo fez com que eu me deparasse face a decisões que antes eram simples ficção. Como fazer para selecionar quem aceitar para o grupo? O que eu precisaria ter à disposição para me sentir à vontade com esses atores e atrizes? Como conseguir que eles e elas levassem realmente a sério o trabalho? Como confiar? Muitas questões passaram a povoar o meu tempo livre. E para elas não existem livros, não mesmo.
Recentemente, diria nos últimos dois meses, deparei-me com atrizes que, aceitas no grupo, passaram a demonstrar mudanças que passaram a me deixar emocionado. Vi atrizes mudando e muito com desafios que eu lhes dava, e relações de amizade sendo solidificadas de formas que até hoje me pergunto como surgiram. Foi então que comecei a ler sobre e de Grotowski. Eu me lembro de recusar sistematicamente a leitura dos seus textos com medo de ser influenciado. Ainda hoje recuso-me a ler o Barba, por exemplo - e ele tem muito a ver com a trajetória do polonês.
"Para um teatro pobre", do Grotowski, organizado pelo Barba e com prefácio e participação de Peter Brook, contém alguns dos textos mais famosos e influentes desse diretor que pouco escrevia suas convicções e que dedicou sua vida a um teatro difícil que tem diversos seguidores, alguns bastante conhecidos no Brasil. Mas é curioso, porque desde que o leio não considero seu teatro necessariamente difícil: é exigente, isso é certo, mas, como ele toca nos pontos que mais me importam, não o sinto como difícil necessariamente - na medida em que não ousemos ir contra sua corrente (ele vai contra a corrente). É preciso aceitar algo de seus pressupostos para dar-lhe o devido valor. Creio que é por aí.
Não irei lhes dizer em que consistem os textos do polonês - algo que para mim, apesar de claro, não aparece claramente o suficiente para me meter a divulgar. Mas lhes digo: tentem entender a forma que ele encontrou para o trabalho do teatro e do ator como uma solução para os dilemas da expressão e da sensibilidade contemporâneos. Um detalhe que ele diz e que faz bastante sentido para qualquer um (mesmo não atores): imagine que eu lhe digo, ator, exatamente como fazer para representar uma cena; isso é dirigir? não, isso é adestrar. O relacionamento entre ator e diretor precisa ser tão intenso por ser entre seres humanos, e nessa medida para que um contribua para o enriquecimento pessoal do outro. Só assim a relação faz sentido. Só assim o diretor cresce na mesma medida que o ator. Só assim há enriquecimento pessoal mútuo. Isso, quando vivenciado, é lindo.
Claro, pode parecer papo-furado. E para muitos realmente ele o é. Acontece que é preciso abrir a cabeça para entender a mensagem. A ponto de questionar o seu próprio papel e do outro - como eu comecei a fazer. Hoje ele é muito importante para mim - embora me recuse a usá-lo como espécie de manual. Eu ainda quero seguir o meu caminho - que venho encontrando aos poucos de forma absolutamente maravilhosa. Mas não posso lhe negar o mérito. Ele abriu caminhos.

Fiz este texto muito apressadamente, com muita coisa a fazer. Precisarei entrar mais no mérito do assunto. Espero fazê-lo logo.

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