Todo o trabalho com o grupo Garotas do Contrera e Cia. começou com uma simples cena. Eu queria me declarar a uma mulher e escolhi uma atriz amiga, a Gabi, para me acompanhar na tarefa por meio de uma encenação a partir de um monólogo que foi simplesmente lido. No caso, a Gabi só aparecia e sentava na minha mesa. Eu - claro - lidava com a interface realidade-ficção. O efeito aconteceu do jeito que eu imaginava.
Mas por algum motivo - de que não me lembro - decidi continuar a tarefa fazendo uma cena para 6 mulheres - num formato experimental - e - também não sei como - todas as 6 atrizes toparam. Eu - que normalmente mal conseguia lidar com minha grosseria no trato - estava apavorado. Não sabia o que iríamos fazer durante o ensaio marcado. Optei por seguir uma direção extremamente respeitosa para todos - simplesmente fazer leituras e, com elas, auferir o que acontecia com a cena. Elas gostaram tanto do processo que me conduziram a fazer outro ensaio, e mais outro, e mais outro. Durante várias horas cada ensaio. Eu fiquei chapado com a dedicação de todas elas. A cena, em si, foi conduzida a contento e o pessoal presente gostou muito. Repito: o formato não era convencional, o da cena, e isso chamou bastante a atenção.
Daí, não sei como nem por quê, comecei a fazer cenas para duplas. O grupo começou a crescer e as cenas passaram a ser defendidas, uma a uma, cada vez por mês. Minha intenção inicial era haverem duas cenas por mês, mas isso acabaria sendo demais. Até porque as cenas precisariam ser ensaiadas várias vezes até chegarem ao ponto desejado. Aqui cabe abrir vários parênteses para as cenas.
Primeiro parênteses.
Havia no começo a intenção de usar atrizes - por enquanto não havia homens - que já se conheciam e se tratavam bem. Era uma ação entre amigas. A primeira cena, da Cris com a Rebeca, foi trabalhada de forma a que elas pudessem entender a que as personagens se referiam - no caso, duas primas minhas. Não houve nesse caso um trabalho muito profundo de lidar com a psiquê dos personagens. Elas tratariam o diálogo de forma a passar uma intenção profunda, principalmente por parte do personagem da Cris, que revelaria uma realidade interna dessa personagem que me interessava ressaltar - sua incapacidade de se enxergar enquanto descendente de indígenas.
Segundo parênteses.
Eu nunca havia dirigido um monólogo, e passei em seguida um monólogo à Valentine. Não cabe aqui dizer como senti a relação da Val com a tarefa, mas cabe dizer sim que ela pareceu encará-la com aparente facilidade e que nós, e especialmente ela, passamos a vislumbrar camadas mais profundas que mesmo a nós não eram muito aparentes. Falei para ela como é a prima em que me baseei para a personagem - uma moça muito bem educada mas também meio fútil que faz de tudo para manter o grau na escala social de outrotra -, e ela pareceu surpresa com algumas opções por parte dessa minha prima e da personagem. Foi então necessário marcar a cena, algo que eu nunca havia feito. Fomos a um espaço que a Val organiza e aos poucos nos entendemos quanto às marcações. Ela pareceu haver gostado bastante. Chamamos a Rebeca, que iria fazer um pequeno mas determinante papel na cena, que topou na hora. A apresentação se deu ainda com certo nervosismo de parte das atrizes, mas saiu-se a contento. A Rebeca soube - como sempre - tirar leite de pedra.
Terceiro parênteses.
Eu havia indicado cenas para outras atrizes, mas calhou que a da Gabi com a Jezz saiu-se melhor, no tempo esperado. A Gabi e a Jezz pegaram o touro pelos chifres e se dedicaram horas a fio na cena. Mostraram para mim a cena uma noite qualquer e eu lhes dei algum background a mais. Elas aproveitaram as indicações para afundar ainda mais na cena, que tratava do encontro fictício de uma prima rica com uma pobre, sendo que esta estava irritada com uma pendência econômica a que a rica não dava a menor bola. Elas apresentaram - sem eu saber - a cena ao Loureiro, que lhes deu umas pinceladas aqui e acolá. A apresentação foi bem recatada mas também bem feita. O pessoal gostou bastante. Eu já sentia que as cenas escapavam de minha mão. O que não era necessariamente ruim.
Quarto parênteses.
Uma amiga queria entrar no grupo. Conversamos. Ela apareceu no teatro e trocamos umas ideias. Ela pareceu-me obcecada demais. Tive de dizer-lhe que não - disse-lhe depois, por face, estava constrangido com a situação. Mas ela estava sendo sincera no desejo e eu fiquei meio mal com tudo isso. Um dia, pedi que ela fosse no Noir e visse uma cena. Ela foi. Estava meio diferente e viu tudo calada. Convidei-a a uma reunião de outro grupo, que faz ensaios para uma peça do Beckett. Ela foi. Estava também bem mais contida. Foi legal. Admiti que sua postura me comoveu. Fiz um monólogo e a convidei. Ela topou. Foram vários encontros em que fui guiando-a na direção que eu queria. A sensibilidade necessária foi muito forte. Ela embarcou com muita seriedade e se entregou à cena como nunca antes eu havia visto. Ela passou a fazer parte do grupo. Apresentou a cena com a participação da Rebeca - de novo, num papel marcante.
Esse último encontro mudou meu entendimento do grupo. Vi na atriz uma mudança que me emocionou, lá no fundo. E vi que o teatro para mim consistia, no fundo, nisso mesmo, numa mudança estrutural do ator/atriz e na apresentação de cenas que pudessem realmente tocar fundo no espectador. Comecei a ler Grotowski e vi que havia uma grande similitude entre seus pontos de vista e os meus. Não totalmente, mas muito forte.
A cena seguinte foi bolada com urgência, pois a pessoa que havia combinado comigo desmarcou e tive de retirar do grupo. Com essa nova postura adquirida na preparação para a última cena, guiei um ator e uma atriz numa cena de rompimento amoroso. Não me interessava o aspecto externo da coisa. Queria ver algo nos atores e nos personagens que fugisse do clichê de um rompimento. Queria ver o paradoxo dos personagens, os dilemas que os invadem durante a cena, o mal-trato a que se conduzem defendendo cada um seu papel social. Pude perceber que eu conseguia guiar o pessoal em outra direção. Perguntei - como sempre pergunto - se o que eu fazia era realmente interessante para eles, os atores. Me disseram que sim. Pude ver uma atriz que na vida parece defender-se com uma postura determinada aparentar fraqueza, aparentar disponibilidade interna para trabalhos exigentes na sensibilidade humana - que é o que me interessa. Pude ver que era mesmo nessa direção que eu queria continuar.
Mas por algum motivo - de que não me lembro - decidi continuar a tarefa fazendo uma cena para 6 mulheres - num formato experimental - e - também não sei como - todas as 6 atrizes toparam. Eu - que normalmente mal conseguia lidar com minha grosseria no trato - estava apavorado. Não sabia o que iríamos fazer durante o ensaio marcado. Optei por seguir uma direção extremamente respeitosa para todos - simplesmente fazer leituras e, com elas, auferir o que acontecia com a cena. Elas gostaram tanto do processo que me conduziram a fazer outro ensaio, e mais outro, e mais outro. Durante várias horas cada ensaio. Eu fiquei chapado com a dedicação de todas elas. A cena, em si, foi conduzida a contento e o pessoal presente gostou muito. Repito: o formato não era convencional, o da cena, e isso chamou bastante a atenção.
Daí, não sei como nem por quê, comecei a fazer cenas para duplas. O grupo começou a crescer e as cenas passaram a ser defendidas, uma a uma, cada vez por mês. Minha intenção inicial era haverem duas cenas por mês, mas isso acabaria sendo demais. Até porque as cenas precisariam ser ensaiadas várias vezes até chegarem ao ponto desejado. Aqui cabe abrir vários parênteses para as cenas.
Primeiro parênteses.
Havia no começo a intenção de usar atrizes - por enquanto não havia homens - que já se conheciam e se tratavam bem. Era uma ação entre amigas. A primeira cena, da Cris com a Rebeca, foi trabalhada de forma a que elas pudessem entender a que as personagens se referiam - no caso, duas primas minhas. Não houve nesse caso um trabalho muito profundo de lidar com a psiquê dos personagens. Elas tratariam o diálogo de forma a passar uma intenção profunda, principalmente por parte do personagem da Cris, que revelaria uma realidade interna dessa personagem que me interessava ressaltar - sua incapacidade de se enxergar enquanto descendente de indígenas.
Segundo parênteses.
Eu nunca havia dirigido um monólogo, e passei em seguida um monólogo à Valentine. Não cabe aqui dizer como senti a relação da Val com a tarefa, mas cabe dizer sim que ela pareceu encará-la com aparente facilidade e que nós, e especialmente ela, passamos a vislumbrar camadas mais profundas que mesmo a nós não eram muito aparentes. Falei para ela como é a prima em que me baseei para a personagem - uma moça muito bem educada mas também meio fútil que faz de tudo para manter o grau na escala social de outrotra -, e ela pareceu surpresa com algumas opções por parte dessa minha prima e da personagem. Foi então necessário marcar a cena, algo que eu nunca havia feito. Fomos a um espaço que a Val organiza e aos poucos nos entendemos quanto às marcações. Ela pareceu haver gostado bastante. Chamamos a Rebeca, que iria fazer um pequeno mas determinante papel na cena, que topou na hora. A apresentação se deu ainda com certo nervosismo de parte das atrizes, mas saiu-se a contento. A Rebeca soube - como sempre - tirar leite de pedra.
Terceiro parênteses.
Eu havia indicado cenas para outras atrizes, mas calhou que a da Gabi com a Jezz saiu-se melhor, no tempo esperado. A Gabi e a Jezz pegaram o touro pelos chifres e se dedicaram horas a fio na cena. Mostraram para mim a cena uma noite qualquer e eu lhes dei algum background a mais. Elas aproveitaram as indicações para afundar ainda mais na cena, que tratava do encontro fictício de uma prima rica com uma pobre, sendo que esta estava irritada com uma pendência econômica a que a rica não dava a menor bola. Elas apresentaram - sem eu saber - a cena ao Loureiro, que lhes deu umas pinceladas aqui e acolá. A apresentação foi bem recatada mas também bem feita. O pessoal gostou bastante. Eu já sentia que as cenas escapavam de minha mão. O que não era necessariamente ruim.
Quarto parênteses.
Uma amiga queria entrar no grupo. Conversamos. Ela apareceu no teatro e trocamos umas ideias. Ela pareceu-me obcecada demais. Tive de dizer-lhe que não - disse-lhe depois, por face, estava constrangido com a situação. Mas ela estava sendo sincera no desejo e eu fiquei meio mal com tudo isso. Um dia, pedi que ela fosse no Noir e visse uma cena. Ela foi. Estava meio diferente e viu tudo calada. Convidei-a a uma reunião de outro grupo, que faz ensaios para uma peça do Beckett. Ela foi. Estava também bem mais contida. Foi legal. Admiti que sua postura me comoveu. Fiz um monólogo e a convidei. Ela topou. Foram vários encontros em que fui guiando-a na direção que eu queria. A sensibilidade necessária foi muito forte. Ela embarcou com muita seriedade e se entregou à cena como nunca antes eu havia visto. Ela passou a fazer parte do grupo. Apresentou a cena com a participação da Rebeca - de novo, num papel marcante.
Esse último encontro mudou meu entendimento do grupo. Vi na atriz uma mudança que me emocionou, lá no fundo. E vi que o teatro para mim consistia, no fundo, nisso mesmo, numa mudança estrutural do ator/atriz e na apresentação de cenas que pudessem realmente tocar fundo no espectador. Comecei a ler Grotowski e vi que havia uma grande similitude entre seus pontos de vista e os meus. Não totalmente, mas muito forte.
A cena seguinte foi bolada com urgência, pois a pessoa que havia combinado comigo desmarcou e tive de retirar do grupo. Com essa nova postura adquirida na preparação para a última cena, guiei um ator e uma atriz numa cena de rompimento amoroso. Não me interessava o aspecto externo da coisa. Queria ver algo nos atores e nos personagens que fugisse do clichê de um rompimento. Queria ver o paradoxo dos personagens, os dilemas que os invadem durante a cena, o mal-trato a que se conduzem defendendo cada um seu papel social. Pude perceber que eu conseguia guiar o pessoal em outra direção. Perguntei - como sempre pergunto - se o que eu fazia era realmente interessante para eles, os atores. Me disseram que sim. Pude ver uma atriz que na vida parece defender-se com uma postura determinada aparentar fraqueza, aparentar disponibilidade interna para trabalhos exigentes na sensibilidade humana - que é o que me interessa. Pude ver que era mesmo nessa direção que eu queria continuar.
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