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O Livro de Itens do Paciente Estêvão (baseado em The Subject Steve, de Sam Lipsyte, direção Felipe Hirsch, Sutil Companhia de Teatro)

Preparado para 4 horas e tanto de espetáculo (pelo menos com intervalo de 20 minutos), entrei na sala do Sesc Belenzinho contente por finalmente encontrar oportunidade de ver o trabalho de Hirsch, que não havia visto até então por eventual desinteresse por obras que, sem assistir, mas lendo a respeito, achei pretenciosas. Esta também seria, a depender do tempo e do esforço desenvolvido para torná-la realidade.
O palco é um grande retângulo enquadrado por uma estrutura metálica em que está presente um Fiat 147 em bom estado, um sofá, duas mesas, algumas cadeiras e diversos outros objetos de cena. Tudo faz crer que as ações transcorrerão na cabeça de alguém, e que os adereços do palco servirão como meio de introjeção em sua mente. Não demora até perceber que é isso mesmo.
Estêvão (nome que o protagonista nega) está condenado à morte pela... morte. Leonardo Medeiros interpreta o personagem cujo nome nos escapa. Dois médicos mais para enganadores retiram esse prognóstico de um simples check-up a que Estêvão se submete. Sua vida muda, então. Retoma contato com a mulher, que o abandonou, e com a filha tartamuda, que o apóia mas que está mais preocupada com os próprios problemas. Torna-se uma celebridade. Passa a tornar-se uma figura pública interessante, para o qual todos então passam a se dirigir, tentando aliviar o seu sofrimento pela doença, pela própria morte. A doença, batizada com um nome que agora me escapa, é simplesmente ela, a morte. Estêvão não consegue viver mais. Precisa de ajuda.
Pede orientação a um guia de uma seita secreta, que o interna numa espécie de prisão na qual ele se considera aos poucos totalmente submisso e da qual quer escapar. E, após muitas peripécias, escapa. É quando acaba a primeira parte da trama.
Até então, a peça pega a todos pelas mãos. Difícil escapar de todos os meios que Hirsch elenca para guiar nossa atenção e interesse. Medeiros consegue captar nosso interesse, e tudo transcorre muito bem, em especial nos momentos capitaneados por Guilherme Weber, que faz o papel do guia da seita. Compartilhamos com o sofrimento do protagonista e torcemos para que afinal escape de uma vez de suas privações. Ronda a trama, o tempo todo, uma aguda ironia, que nos faz rir momentaneamente e que consegue revestir a trama de uma aura quase épica (não no sentido brechtiano). Claro, é do homem contemporâneo que tudo trata, do seu destino numa civilização guiada pelos interesses de todos em nome da chamada felicidade conquistada com bens e serviços.
A peça retorna com a recuperação do protagonista de sua escapada. Aos poucos, porém, a trama muda de tom. Torna-se tudo um reality show, em que o destino da trama passa a ser guiado pelos subterfúgios de que outros personagens fazem uso para tirar proveito do destino de Estêvão, que – esqueci – passa a ter seus livros de itens (hábito inculcado pela seita) vendidos e transformados em material para programas de tv. A peça passa a depender então da força do simulacro do televisionamento, que transforma Estêvão num objeto guiado por interesses espúrios. Estêvão entra no esquema e submete-se a uma série de idas e vindas para conseguir terminar seu hábito de escrever seus livros de itens, que se tornam o motivo de sua vida. A peça termina com sua “morte” e ressuscitamento, como um homem selvagem, condenado à perdição mas que, como todo ser humano, subjuga o ambiente e passa a guiá-lo na medida de suas forças.
A segunda parte da peça parece ser guiada por um clima de absurdo que faz com que aos poucos percamos o interesse, mas no final este é retomado por curtas cenas mais comedidas e representativas do clima arquetípico da trama. Tudo termina bem.
A duração da peça não é obstáculo à sua fruição, pois tudo transcorre com eficácia e originalidade. Mas sinto que algo de mais profundo ficou para trás, em meio a tantas peripécias e desventuras. Mas o espetáculo diverte e, na medida do possível, convida a alguma reflexão. Não é obrigatório vê-la, não, mas que diverte, diverte, sim.

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