Rodrigo Contrera
A sabedoria popular diz que a gente não leva nada da vida, tirando quem sabe a lembrança. É muitas vezes desse tipo de argumento que muitos, premidos às vezes por necessidades econômicas, acham força para continuar. Não se deixam afetar pelas adversidades, e muitas vezes as superam. Essas pessoas não são bem idealistas: estão mais vacinadas contra ilusões.
Outros, mais pessimistas, tendem a depositar mais fé naquilo que conquistam, que dá para pegar, que é material – dinheiro, mulher, etc. Estes não se preocupam muito com a suposta vida após a morte. Lutam por coisas que lhes fazem bem agora, enquanto estão vivos. Também não dão tanta importância a valores (como paixão, amor, etc.) ou a sensações.
Todos nós enfrentamos dificuldades, é certo. Há aqueles que sabem lidar melhor com elas, e outros que não o conseguem. Durante as aflições, surge a dor. Diante da dor, a gente pode capotar ou resistir. Passada a dor, algo sempre fica. Às vezes como resultado aparecem marcas em nós que passamos a considerar difíceis de superar. Nosso comportamento muda e nossas crenças, também. Há quem passe a achar que, em questões envolvendo o amor, nunca irá superar certas dores. Mas a vida continua, e essas pessoas ora encontram novos amores ora não encontram mais. As situações mudam, e as dores e suas consequências também.
Eu nunca aguentei muito bem a dor. Quando criança, ao menor machucado eu
me metia a abrir o berreiro. Pedia ajuda à minha mãe, que sempre acudia. Quando
me metia em confusão, dava muitas vezes uma de mariquinhas, em busca da ajuda
de alguém de fora. Isso mudou um pouco quando fiz karatê, mas no fundo não
mudou tanto assim. Simplesmente as questões mudaram de lugar, e a dor surgia onde
não mais eu esperava. No caso do amor, eu só vim a sentir dores mesmo há muito
pouco tempo (meses). Quando isso aconteceu, eu voltei a ser o mariquinhas de
antigamente. Ora dava uma de vítima, ora culpava o outro por algo que ele
provavelmente nem tinha pensado em fazer, ora ficava me lamentando sem saber
como parar.
As pessoas com que convivo, cada uma delas, tem uma experiência muito própria sobre a dor. Por causa disso, cada uma entende as questões relativas a problemas de diversas ordens de uma forma toda particular. Há aquelas, porém, que ao que parece muitas vezes não conseguiram resolver certas questões. Não sei bem por que, tão logo eu comecei a superar questões pessoais recentes passei simultaneamente a ver de que forma certas pessoas demonstravam, em seus comportamentos, seus limites com decepções e dores. Calhou que eu tinha um grupo de teatro e que essas pessoas eram, em sua maioria, atrizes e atores. Calhou que eu passei a me identificar com situações em que podia transferir certas questões pessoais para o palco, seja sob a forma (enviesada) de textos dramatúrgicos, seja sob a forma de atuações.
As atrizes e atores mais jovens não costumam ser tão encanados/as quanto os/as mais velhos/as. Isso a gente percebe pela forma como se comunicam com as palavras e com o corpo. Claro, há aquelas pessoas mais maduras que, mesmo muito sofridas, disfarçam. Mas, regra geral, os atores/atrizes mais velhos são mais travados, e os mais jovens assumem comportamentos mais leves. Mas há sempre um momento em que a gente percebe uma resistência, um instante de hesitação, em que a pessoa meio que pára, sem saber direito o que fazer. Muito disso a gente percebe no olhar – dizem que o olhar não mente. Não sei. Sei apenas que quando uma pessoa se esconde também se esconde por intermédio do olhar.
Uma coisa que sempre me incomodou em cidade grande (vejam, eu cresci na capital do Chile, Santiago, mas vivia num bairro distante, isolado, de classe alta, em que o jeito citadino característico não era muito comum de ver): a frieza daqueles que se vêem num lugar em comum. Por exemplo, passageiros de ônibus e trens. Ou gente que almoça junto. Ou colegas de escritório. Passaram-se muitos anos até eu entender que a regra do jogo era mesmo essa. Daí que eu também esfriei e passei a ficar na minha. Convivia com colegas por anos a fio e fingia não notar sua presença. De alguma forma, meras impressões viravam interditos, e eu passei com o tempo a preferir ficar sozinho. Como não tinha experiência amorosa quase nenhuma, fui ficando um cara amargo, que não sabia como se aproximar e, por ainda, que não parecia ver outra forma de se relacionar senão apelando para supostas qualidades que eu achava que tinha e que ninguém parecia reconhecer. Bastou conhecer alguém com maior profundidade para descobrir que isso era balela. Depois eu vi o que era realmente começar a conhecer alguém, a amar.
Mas para conhecer o outro é também preciso conhecer a si mesmo. E isso venho descobrindo aos poucos, agora, aos 47 anos. Nesse afã, decidi conhecer – de verdade – cada vez mais pessoas, que passei – no caso de atores e atrizes – a dirigir em cenas que passei a dedicar a eles/as. Isso me permite usar de minha sensibilidade, que é imensa mas muito mal cultivada, para adentrar no universo alheio e, percebendo coisas muitas vezes inusitadas, questionar a mim mesmo quanto àquilo que sou, aquilo em que acredito e aquilo que desejo em minha vida. Surgem situações estranhas, claro, pois nesta sociedade machista e misógina latino-americana – que passei a identificar nas pequenas situações criadas por essa minha postura –, um cara que diz sentir-se realmente interessado pelos outros, e além do mais atraído pela vida de gente que, por diversos motivos, tende a ser muito bonita fisicamente, é de pronto dentificado como um oportunista. Não tem como fugir desse tipo de suspeita, pois a experiência mostra que, por detrás de boas propostas, muitas vezes existe apenas uma realidade camuflada por gente que só quer tirar vantagem das situações criadas, em que sempre há alguém necessitado de oportunidade – no caso, os atores e atrizes – e alguém, no caso os diretores ou outros envolvidos, que precisa, sim, de talentos, mas que também quer tirar uma casquinha de tudo o que acontece.
Minha vida tem se mostrado, contudo, até agora, repleta de interditos com os quais nunca concordei – muitas vezes aplicado por mulheres fortes em minha vida, como minha mãe, minha esposa, e outras –, e muita dor, advinda de outras fontes. Essa dor também contribuiu para tornar-me um cara bastante amargo – e, mais ainda, desconfiado da ideia e da prática da felicidade. Com minha busca pela verdade que eu sinto, eu escapo desses interditos, muitas vezes também advindos dos códigos morais correntes na sociedade em que vivo. Por outro lado, minha experiência prévia me induz a reparar mais nas dores daqueles com que converso do que nas suas alegrias. Isso é uma deturpação, eu sei, mas infelizmente tenho dificuldade em lidar com ela. Daí que eu como que pareço virar um terapeuta, identificando questões que no fundo só parecem dizer respeito à pessoa com que converso. E eu? Tenho uma dificuldade muito grande em me envolver. Não consigo, ou tenho suprema desconfiança, em me deixar tocar por aquilo que eu vejo. Assumo tudo, com frequência, quase friamente. O estranho é que, ao que parece somente assim, eu consigo sentir realmente que vejo algo que REALMENTE me interessa.
Fiz terapia por muitos anos, com profissionais, a grande parte, de orientação junguiana. Fui submetido a diversos testes, que comprovaram eu ter muitos problemas de ordem psicológica. Como sempre, combati esses problemas com muita garra e ainda faço isso. Mas sempre lidei com indisfarçável desconfiança com a distância emocional entre terapeuta e paciente. Sempre pareceu-me que para o terapeuta eu era mais um objeto sendo analisado do que um ser vivo que pode ter falhas e que pode admitir não saber lidar com elas – ou seja, que não necessariamente busca uma certa cura ou correção de conduta. Descobri, porém, com o decorrer do trabalho com o meu grupo de teatro, que havia uma questão fundamental – não tratada por método – que fazia toda a diferença nesse processo todo: o amor. É sempre terrível para mim perceber que, seja em qual relacionamento que a gente se meta, muitas vezes não há nenhum amor envolvido pelo outro ser humano com quem travamos relação. Os alemães identificam esse amor com uma palavra no fundo técnica: einfühlen (sentir no lugar de), que para muitos se traduz como empatia. O músico Kurt Cobain dava especial realce à empatia, por exemplo – e talvez tenha se matado por sua ausência em sua vida repleta de altos e baixos. Para sentir empatia, contudo, é sempre, até certo ponto, necessário haver um distanciamento. Pois o mero envolvimento pode acarretar uma ausência de medida – e um grande sofrimento em quem se deixa cair demais no drama do outro. Minha antiga terapeuta, Mercedes, uma vez me disse que saía acabada de minha terapia, quase sentindo fisicamente a minha dor. Isso é complicado.
Estou numa fase estranha, saindo de um “relacionamento” (ainda nem sei direito o que aconteceu) em que me entreguei demais sem conseguir uma entrega similar (embora não tenha havido má-fé da parte dela). Por outro lado, identifiquei em mim uma capacidade inédita em, ao que parece, sentir o drama alheio, especialmente em mulheres, e, o que é até certo ponto perigoso, conseguir desvendar universos que no fundo não deveriam me dizer respeito – afinal, não sou terapeuta delas nem alguém mais chegado. Porém, tenho aprendido tanto com isso que vejo-me num beco sem saída.
Descobri em mim uma capacidade incrível em desenvolver cenas de teatro –
a maioria realistas –, quero ter a possibilidade de criar cenas de boa
qualidade (como diretor, o que venho conseguindo), e consigo criar confiança
muito grande (até certo ponto inédita) em atrizes e atores que se deixam
abandonar ao processo e que, em grande parte por causa disso, fazem coisas –
durante o processo ou em cena (que me levam às lágrimas, muitas vezes). Eu
sempre fui um chorão, eu lhes disse. E não encaro o choro como uma fraqueza, se
querem saber. No meu caso, é a descoberta de verdades profundas, que me tocam e
que eu gostaria de eternizar – se não na prática, no mundo, ao menos em minha
vida. Enquanto isso, vivo e procuro. Acharei um dia? Não sei.
P.S.: Este texto é, em parte, minha resposta a um post do Mário Bortolotto, o Marião, no facebook, sobre a suposta falência da psicoterapia no mundo atual, substituída ao menos aparentemente por likes ou ausência de likes que levam as questões pessoais a paroxismos do bem ou mesmo do mal.
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