Bela como uma flor selvagem (sei, pode parecer uma breguice
sem tamanho, mas é verdade), esta belga que não é da Bélgica mas que nutre um
profundo desprezo por aquilo que sua França (no caso, de Rennes) causou nestas
paragens outrora e até agora ainda deixa sinais de que na infância
comportava-se como um animal que não queria passar os dias em jaulas.
Ela diz que tem os pés esfolados até agora – passados 37
anos. Ela também diz que algo de sua trajetória ela realmente deve a esse seu
caráter virtualmente indomável – quem sabe, embora deixe claro que busca um
caminho mais suave, de olho no olho e conversa em bom francês, em palavras e
gestos. Mas o maior sinal de sua selvageria parece, a quem não a conhece tanto,
embora a conheça bem, de sua incapacidade em manter às vezes a seriedade e
traduzir esse inconformismo nos trejeitos que adora fazer, como boa palhaça da
vida.
Tradutora de boa cepa, com dedicação exclusiva a essa arte,
que só lhe toma mais tempo que o seu amor por Margueritte, sua cachorra
vira-lata de expressividade ímpar no olhar, essa belga selvagem já passou por
poucas e boas em sua tentativa de escapar das amarras da sociabilidade
estritamente francesa e das armadilhas da aparentemente singela sociabilidade
brasileira, em que muitas vezes acaba confundida como uma escada ou escapado
rumo ao primeiro mundo de que ela se origina mas que não aprecia tanto assim,
por gostar tanto da vida e da possibilidade de civilização em meio a árvores
que não precisam tanto assim ser podadas como de praxe lá por aquelas bandas.
Dramaturga bissexta em formação, com queda abominável pelo
universo infantil, que lhe reflete algo de sua psique indômita da qual sente
bastante falta, esta belga falsa não hesita em ler nas entrelinhas em meio a
tudo que possa lhe fornecer subsídios para escapar de algo cujo nome muitas
vezes lhes escapa, mas que quando vê percebe que acertou. A belga às vezes
quase ignara de si aprecia tanto uma delicadeza de quem sabe quanto a tosquidão
de quem pouco se importa que não consegue imaginar uma outra razão de vida,
embora saiba que os liames mais profundos muitas vezes descansem em tênues
falsidades que fariam um Génet tremer de angústia. Mas ela não busca o
bas-fond, não. Ela só desconfia do que mais se apresenta como chique, porque
ela sabe que de chique só mesmo a amizade maior e mais profunda.
Detesta o Chico, essa suposta aprendiz tão sábia de vida.
Treme diante da ingratidão, essa maluca que tantos ombros fornece aos seus mais
queridos. Exulta com a inteligência, vindo ela de onde for – mesmo que dos
vasos mais quebrados e apesar disso tão reluzentes. Descansa sempre em alguma
melodia desses sujeitos e amazonas que lenços caros que acha num desses youtube
da vida. Compartilha sensações que lhes escapam e identifica auras onde os
olhos parecem tremer de frio.
Esta belga de boa índole chama-se Géraldine Gauthier, é uma grande
e recente amiga, e logo estará escapulindo rumo a um novo quarto ainda mais
quieto e confortável onde irá poder sofismar sobre sua vontade de se acomodar
em meio à sofisticação de um mundo regado a duas línguas – o francês e o
português – que só não a dividem ao meio porque ela tem um corpo bem rijo e
forte e a um convívio umidificado a risadas desbragadas (mas não tão altas
porque, suprema heresia, são mal-educadas rs). A ela um maravilhoso 2015 cheio
de amor verdadeiro e compaixão para quem não precisa de polícia.
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