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Oficina sobre Gógol: a “loucura” (ou non sense) sob amarras epistemológicas?

Rodrigo Contrera

Desde a faculdade nutro um profundo interesse pela Rússia (na época, União Soviética, antes da glasnost). Minha ligação com o país envolve poesia, história, literatura em geral e posteriormente teatro – minha ligação com o teatro é mais recente, desde o ano de 2008.
A poesia russa me atrai em especial devido ao caráter quase sagrado que a sociedade russa sempre atribuiu (e ainda atribui) à lide com a palavra em geral e com a poesia em particular. Meus poetas preferidos são quase todos russos. Em história, a partir de certo momento tornou-se para mim patente o papel fundamental da Rússia em deter Hitler e seus aliados e em vencer a Segunda Guerra. Isso sem contar a radicalidade da Revolução de 1917 e todo o protagonismo do país durante a Guerra Fria. (Um aspecto marginal que me atrai na história russa é o caráter emblemático de sua intelectualidade, sempre metida em conspirações, revoluções e movimentos de ordem intelectual com ênfase política).
Em literatura, Dostoievski e seus precursores, além dos críticos, cumprem um papel fundante na evolução das letras em todo o mundo. No meu caso em particular, Dostoievski simboliza a seriedade de um literato profundamente envolvido nos destinos da humanidade e de seu país, o que também afetou outros escritores – inclusive recentes – que por causa disso tornam-se luminares universais (Brodski ou Soljenitsin, por exemplo). Os russos são quase sempre radicais de várias formas, e isso me atrai sobremaneira – tendo nascido num país como o Chile, numa família de classe média, fugida (por motivos econômicos) durante a ditadura de Pinochet.
A ligação com o teatro russo é mais recente – mas ainda mais fundamental, dado o papel transformador das contribuições de Stanislavski, Meyerhold e outros nas artes cênicas do final do século XIX e começo do século XX. Mas não simplesmente me limitei a Stanislavski: conheço bem de caso pensado a descendência norte-americana, simbolizada por um Actor’s Studio, sem porém ficar apenas no aspecto mais conhecido da história (interessa-me a técnica, como com todos os grandes). Li muitos dos russos e sobre os russos, só não aprendi russo por falta de tempo.
Já Gógol, por outro lado, tem uma presença ainda mais fundamental no campo da literatura e das artes como um todo, por ser, segundo Dostoievski, por exemplo, um precursor dos precursores – dele, por exemplo. O Inspetor Geral eu havia lido há anos, tendo o livro traduzido pela profa. Arlete Cavaliere, e embora tenha me causado uma forte impressão não necessariamente mudou minha forma de ver o mundo. Sempre encarei Gógol como um caso patológico que, como muitos outros, antecedeu tendências que iriam mudar para sempre o panorama da arte. Não me atenho, no caso de Gógol, a seus ensinamentos, pois considero que tudo nele foi eminentemente idiossincrático – e que segui-lo equivaleria a seguir um louco. Mas loucos dizem verdades.
O fato éque eu havia lido Gógol há anos. E achava que o conhecia. De fato, a história de Gógol é a história de um problema – até mesmo psiquiátrico. Mas eu o havia esquecido. Sua obra completa continua em minha biblioteca, mas após ter sido lido apenas preenche espaço, agora. Pelo menos até agora. No sentido de melhor conhecer o autor russo, foi então absolutamente fundamental compartilhar impressões durante primeira fase do programa Teatro Russo, do Grupo Pandora de Teatro, de Perus.
Num primeiro momento, impressionou-me nessa oficina a distância (muito grande) do local onde ela deveria ocorrer (o CEU Pera Marmelo) de nossa base costumeira – o centro da cidade. Aqui seria necessário para mim saber conduzir o trabalho em respeito às adjacências. Daí que a questão do Teatro Russo foi, apesar dos pesares, menos relevante do que na hora da inscrição – uma surpresa. Aprendi muito vendo e admirando a paisagem natural e humana sendo embalado pelos trilhos do trem da CPTM Linha Rubi. Minha noção do que é São Paulo mudou então radicalmente. Assim como minha sensibilidade diante da alteridade.
O trabalho do Pandora no trato de Gógol foi tradicional. Teve conversa inicial, com cada um se conhecendo e conhecendo os outros, teve exercícios físicos, com alongamento bem particular, teve trabalhos práticos, com desenvolvimento de movimentos grotescos, ligados à vertente gogoliana, e apresentação de cenas, desenvolvidas em muito pouco tempo (como eu gosto), ausência de debates intensos (embora houvesse espaço para colocações particulares), incentivo a apresentar imagens (no meu caso) a partir de uma observação minha, etc. Não houve um trabalho intensivo de corrigir nada, especificamente, o que muito particularmente me agrada. Ou seja, não me agradam os juízos com base em experiências basicamente pessoais ou de grupo. Eu prezo acima de tudo a liberdade criativa do artista, seja qual for a sua ênfase. Teve também leitura de peça do Gógol e indicação de outras peças do mesmo autor, a partir de apresentações em Powerpoint.
Antes de ressaltar os pontos que me chamaram a atenção da oficina, gostaria de destacar que, por razões eminentemente pessoais e idiossincráticas, tendo a recusar de forma direta ou indireta posturas que identificam o conhecimento como algo a ser possuído e que necessariamente conduziria qualquer um a posições de destaque seja qual for o seu ramo. Comporto-me com esse tipo de recusa por identificar em posturas desse tipo uma arrogância que conduz a sociedade, em qualquer nível, à concentração de poder, ao arbítrio e ao predomínio do gosto pessoal mascarado em conhecimento superior. Em suma, considero que pessoas que assumem a postura arrogante de se mostrarem superiores ou acima das outras com base em seu conhecimento (real ou fingido) causam um dano muito maior ao teatro e à sociedade do que podemos auferir, pelo simples fato de reduzirem a nada ou diminuírem de importância demonstrações de singeleza por parte de gente não tão detentora de conhecimento mas que preservam um frescor difícil de encontrar na academia ou nas conversas entre gente de academia – assim como entre profissionais de diversos tipos de empresas. Quando o ego e o poder tomam conta do espaço, dificilmente uma arte livre e poderosa pode surgir, em suma.
Ocorre que, com limitadas exceções, esse tipo de postura ao se transmitir conhecimento não foi observada na oficina do Gógol. Muito ao contrário, houve sempre ou quase sempre uma alegria imensa ao descobrir ou redescobrir o autor, em diálogo com exercícios práticos ou mesmo encenações. Isso fez com que, em ocasiões muito limitadas, eu realmente me sentisse oprimido com o peso hostil e infértil da arrogância travestida de transmissão de conhecimento. Isso foi fundamental ao aproveitar a oficina, na medida em que eu já conhecia diversos textos do Gógol e se isso acontecesse – essa arrogância – eu naturalmente iria me considerar desmotivado e irritado no processo. Mas essa é uma postura eminentemente pessoal, dado os outros participantes da oficina em nenhum momento terem expressado algum incômodo seja lá a partir de que material ou conversa ou mesmo debate.
Por outro lado, apesar do tom alegre da descoberta ao se sentir em Gógol o prenúncio de um mundo que hoje se verifica em tons elevados e cada vez mais desconcertantes, não posso deixar de notar o quanto deixou a dever, na oficina, a recusa (ou a falta de objetividade) a se tentar especular quanto ao grotesco num mundo completamente diferente ao dele (um dos objetivos expressos da oficina). Causava-me (e ainda me causa) certo espanto perceber que era sempre mais ressaltada a ligação entre o que Gógol dizia à sua época com o que veio depois, sem tentar avançar (afinal, estamos falando de arte, caramba) nas ligações daquilo que ele falava com movimentos posteriores – o teatro do absurdo, por exemplo – ou com repercussões outras, a algumas das quais todo artista é agora sujeito. Parece haver, e não só na oficina, um certo medo a tentar navegar em mares turbulentos, optando, ao contrário, por enquadrar o que era indômito (o espírito gogoliano) em uma listagem de características típicas do que seria gogoliano. Claro, a própria menção à biografia do ucraniano colocava questionamentos quanto ao caráter apolíneo de sua história – mas o que resultava tornava-se apenas um mote para efemérides de alcance limitado. Não me causou boa impressão a má receptividade, por parte de alguns membros da oficina, a provocações (em geral, minhas), que tentavam, com toda boa intenção, criar conexões aparentemente estranhas ao pensamento do autor. Claro, seria necessário ir mais além para fazer isso, conhecer melhor sua obra, mas incomoda-me o caráter muitas vezes sério demais atribuído a algo que, mutatis mutandis, é arte, e não conhecimento filosófico, por exemplo.
Sobraram diversos materiais a ler e a devassar, contudo. Muitos desses materiais foram fornecidos no grupo do facebook criado para apoiar a oficina – indo desde textos, contos, vídeos e tudo o mais. Muito em que se aprofundar para ter uma noção mais tridimensional desse autor tão interessante mas ao mesmo tempo tão deslocado de qualquer classificação ou enquadramento em movimento maior ou mesmo difícil de ser considerado precursor por ser tão específico e característico de suas origens e época. Muitas outras considerações, feitas durante a oficina, também senti que eram meio deslocadas para uma certa inexpressividade por serem aparentemente consideradas extrapolações sem comprovações empíricas – quando, insisto em ressaltar, a arte é o campo do fértil, que pode ter sentido ou não, mas que pode, mesmo assim, ter repercussão expressiva. Isso, ao que parece, não é entendido dessa forma pela maioria dos participantes da oficina. Claro, não posso necessariamente reclamar. É como EU vejo a arte em si, e nisso não posso, é claro, obrigado ninguém a concordar comigo.
Pareceu-me, contudo, meio estranho que Gógol tivesse aparecido antes de Stanislavski, na explanação do que seria o teatro russo. Pois, embora historicamente Gógol apareça antes, Stanislavski é ainda mais fundamental – e nisso alguns participantes da oficina pareceram se focar ainda mais, por interesse eminentemente pessoal. 

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