Minha
trajetória de 8 anos no teatro, como espectador, resenhador, dramaturgo e ator
nunca esteve tão tumultuada mas ao mesmo tempo tão enriquecida, e minha
passagem pela oficina da Confraria da Paixão foi, nesse processo, absolutamente
determinante. Para que eu consiga vislumbrar, para mim, o que acontece, e, para
os outros, aquilo sobre o que reflito, é necessário realizar um sobrevôo na
paisagem complexa e rarefeita do teatro visto e experimentado, com paixão e
profundidade, nos últimos anos.
Provavelmente
ao contrário da imensa maioria dos interessados pela arte teatral, não comecei
no ramo pelos princípios básicos, mas guiado à distância pela mão de um dos
três mais importantes encenadores do país das últimas décadas, Gerald Thomas.
Seria um despropósito tentar explicar como isso se deu, uma história belíssima.
Só digo que pude acompanhar seu processo por 4 meses, como fantasma, e ser
jogado sem rede de proteção no palco – lugar onde decidi ficar. A vanguarda
possível havia ficado para trás.
Não
se pode andar para a frente sem quebrar a cabeça de vez em quando, e foi isso
que fiz então ao me jogar nas Satyrianas por 3 ocasiões com texto e direção
próprios, sem a menor ideia do que fazia – nenhum modelo ou lição eram de meu
conhecimento. Minha estreia se deu dirigindo quem se dispôs a me seguir POR
MEDO, numa escola.
O
teatro tradicional, no palco italiano, foi então se apoderando de meu universo
– que abordei em garrafas jogadas em blogs da internet. Até o momento em que
fui abordado por um crítico bem reconhecido no meio da vanguarda paulistana,
com o qual colaborei como entrevistador curioso e insuportavelmente
ensimesmado. Durou uns meses.
A
vida fez com que eu caísse de vez na arte, e nesse entretempo conhecesse grupos
de teatro regional e de rua, assim como grupos de vanguarda de matiz bastante
europeizante. Gostei das experiências, mas elas me deixaram mais confuso que
esclarecido. O pós-moderno cobrava um preço alto nas minhas convicções, e a
convivência com tempos históricos diversos neste país multifacetado começava a
me deixar apalermado, sem saber realmente em que direção me dirigir.
A
noite invadiu-me então, e por meio de amizades recém-conquistadas passei a
encarar por dentro o realismo e o hiper-realismo do teatro underground – pela
primeira vez como ator, dirigido por profissionais de cepa tradicional. Mais
uma vez abaixei a crista sem me arrepender. O aprendizado constante fez-me
montar um grupo.
Mas
aí, em outubro de 2014, sobrevieram as questões não-resolvidas sobre o teatro
popular, do qual sabia relativamente pouco mas cujos desafios vieram ao
encontro de minhas perenes dúvidas de classe (marxismo) e de empatia (oriundas
da música, outra arte básica em minha trajetória de esteta inconformado). A
Confraria da Paixão enfiou-me, goela abaixo, granadas de efeito retardado que
combinaram como nunca antes com insatisfações que sempre escaparam do teatro –
e que me dominavam (como tentarei explicar). Pois um homem é feito acima de
tudo de vida – e a vida, de mortes.
Nasci
no Chile, criado por uma babá de origem indígena. As palavras faltam quando
lembro do carinho de ser criado por alguém de cultura ancestral, e sobra
indignação quando me recordo do momento em que experimentei seu desaparecimento
real e simbólico – a sociedade chilena simplesmente ignora tudo o que é
mapuche, “da terra”, local. Minha busca por raízes internas fez-me embarcar
rumo ao Peru e ao Equador, onde encontrei mais subsídios que me fizeram
compreender algo da cisão que destruiu, por exemplo, um José Maria Arguedas,
escritor que passou a infância em meio à cultura do quéchua e que se matou com
um tiro de espingarda. Como não entender, por dentro, a recusa da cultura
tradicional ao povo pela cultura erudita que sempre fez minha cabeça, advinda
de origens diversas e – algumas – duvidosas? Fantasmas outros pareciam surgir
em meio à oficina da Confraria, e os escombros deixados entorpeciam.
O
matiz “pituco” (fresco) de uma sociedade de costas para o local envernizara,
porém, minha relação com o trato social – e eu teria permanecido protegido do
suposto “mau gosto”, após fazer faculdades de primeiro nível, se minha
biografia não estivesse coalhada de passagens em realidades de mau agouro –
passagens essas que me deixam desconfiado sempre que sou defrontado com a
oposição entre mau e bom gosto. Não foi necessário, para mim, ler Baudelaire e
saber de sua trajetória para compreender a modernidade – e a tosca realidade de
se andar na rua, em meio ao povo, levando encontrões que criam calos no
espírito e que nos afastam da boa educação escolar. Como não entender, então, a
atração exercida pelo cordel e todos seus precursores e sucessores na alma do
ser singelo que nunca leu nada mas que tem em si o critério estético de saber o
que vale e o que não presta para a alma do sujeito que passa pela rua e ao qual
só lhe resta se divertir com demonstrações aparentemente simplórias de artes
que remontam ao populacho de milênios atrás, quando a arte apareceu? Como não
ficar em dúvida perene ao sentir que aquilo que me fora vendido como valor (a
arte tradicional ou erudita) não consegue acender em mim velas num espírito
calejado pela necessidade – e incomodado pelo jogo das amizades que fazem a
regra no mercado?
Tudo
pararia por aí, contudo, se eu não me sentisse vivendo realmente no século XXI,
momento histórico em que a aldeia global parece destruir quaisquer liames de
autenticidade entre as pessoas, seja qual for o continente em que vivam ou a
língua que habitem, por meio de telas de diversos tipos e tamanhos – usadas
agora por povos de culturas ancestrais que, como todos os outros, passam a vender
o seu peixe em meio às ondas da web. Eu não me engano ao compreender que não
vivo no passado nem nas convicções de alguém que recita princípios de conduta
ao atravessar a rua. Eu vivo em meio a interstícios do asfalto que podem ou não
remontar a significados históricos que outros esposam geralmente com desilusão
– mas que no meu caso teimo em não assumir, seja por covardia, seja por
incapacidade de aguentar o rojão. Um pedinte me aborda na rua e eu o evito como
todo membro de classe abastada – contrariamente a amigos quem sabe menos
cindidos mas mais afeitos ao trato cordial subentendido por um Gilberto Freyre
de outrora. Eu venho de uma sociedade cujo brasão é “Por la razón o la fuerza”
(Pela razão ou pela força), bem entendidos estejamos. Vi bombas de perto. Vi
armas, quase vi uma guerra civil – e eu tinha apenas seis anos. Nada demais,
claro, para quem – como muitos – viu parentes mortos na periferia – onde não
vivi nem vivo – e, venhamos e convenhamos, nem quero viver. Pau que nasce
torto...
O
que não dizer, agora, contudo, quando acabo de perceber o quanto a linha da
sutileza de verdades óbvias e rasteiras originadas de sofrimentos existenciais
de matiz diversa insistem em me atrair no trabalho com o grupo que dirijo?
Psicodrama que se dane, acabo de notar o desafio que é guiar com mão de ferro
espíritos de atrizes e atores incapazes de se enxergarem por meio de cenas
realistas ou não-realistas que os obrigam a desabar de forma inapelável –
processo que nada tem a ver com a forma pela qual o povo encara a vida – e a
enfrenta, contrariamente a ensinamentos de Freud e quejandos.
Constato,
porém, nessa minha lide de destruições e autodestruições, que tudo me incomoda
quando vejo o quanto a diversão pela diversão, pelo povo para o povo, desmerece
toda e qualquer reflexão de cunho abstracionista que tenta, por meio de todo e
qualquer recurso, captar a atenção desse mesmo povo que não está nem aí.
Refiro-me, é claro, a toda demonstração artística de pretensas vanguardas que
no fundo nem sabem o que dizem nem para quem. O teatro popular, nesse sentido –
e ao que parece em muitos outros –, não passa nem de longe por questões
existenciais. O público está onde a multidão se encontra. A arte está na
simplicidade do aparecer aos olhos de quem sabe ver. O incômodo do
politicamente correto não manda na lei da rua, que domina a urbe e o mundo.
Prefiro rir e chorar a pensar e conectar? Não sei. Um dia saberei? Quem sabe?
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