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Granadas de efeito retardado no cuspe de um mamulengo, por Rodrigo Contrera

Minha trajetória de 8 anos no teatro, como espectador, resenhador, dramaturgo e ator nunca esteve tão tumultuada mas ao mesmo tempo tão enriquecida, e minha passagem pela oficina da Confraria da Paixão foi, nesse processo, absolutamente determinante. Para que eu consiga vislumbrar, para mim, o que acontece, e, para os outros, aquilo sobre o que reflito, é necessário realizar um sobrevôo na paisagem complexa e rarefeita do teatro visto e experimentado, com paixão e profundidade, nos últimos anos.
Provavelmente ao contrário da imensa maioria dos interessados pela arte teatral, não comecei no ramo pelos princípios básicos, mas guiado à distância pela mão de um dos três mais importantes encenadores do país das últimas décadas, Gerald Thomas. Seria um despropósito tentar explicar como isso se deu, uma história belíssima. Só digo que pude acompanhar seu processo por 4 meses, como fantasma, e ser jogado sem rede de proteção no palco – lugar onde decidi ficar. A vanguarda possível havia ficado para trás.
Não se pode andar para a frente sem quebrar a cabeça de vez em quando, e foi isso que fiz então ao me jogar nas Satyrianas por 3 ocasiões com texto e direção próprios, sem a menor ideia do que fazia – nenhum modelo ou lição eram de meu conhecimento. Minha estreia se deu dirigindo quem se dispôs a me seguir POR MEDO, numa escola.
O teatro tradicional, no palco italiano, foi então se apoderando de meu universo – que abordei em garrafas jogadas em blogs da internet. Até o momento em que fui abordado por um crítico bem reconhecido no meio da vanguarda paulistana, com o qual colaborei como entrevistador curioso e insuportavelmente ensimesmado. Durou uns meses.
A vida fez com que eu caísse de vez na arte, e nesse entretempo conhecesse grupos de teatro regional e de rua, assim como grupos de vanguarda de matiz bastante europeizante. Gostei das experiências, mas elas me deixaram mais confuso que esclarecido. O pós-moderno cobrava um preço alto nas minhas convicções, e a convivência com tempos históricos diversos neste país multifacetado começava a me deixar apalermado, sem saber realmente em que direção me dirigir.
A noite invadiu-me então, e por meio de amizades recém-conquistadas passei a encarar por dentro o realismo e o hiper-realismo do teatro underground – pela primeira vez como ator, dirigido por profissionais de cepa tradicional. Mais uma vez abaixei a crista sem me arrepender. O aprendizado constante fez-me montar um grupo.
Mas aí, em outubro de 2014, sobrevieram as questões não-resolvidas sobre o teatro popular, do qual sabia relativamente pouco mas cujos desafios vieram ao encontro de minhas perenes dúvidas de classe (marxismo) e de empatia (oriundas da música, outra arte básica em minha trajetória de esteta inconformado). A Confraria da Paixão enfiou-me, goela abaixo, granadas de efeito retardado que combinaram como nunca antes com insatisfações que sempre escaparam do teatro – e que me dominavam (como tentarei explicar). Pois um homem é feito acima de tudo de vida – e a vida, de mortes.
Nasci no Chile, criado por uma babá de origem indígena. As palavras faltam quando lembro do carinho de ser criado por alguém de cultura ancestral, e sobra indignação quando me recordo do momento em que experimentei seu desaparecimento real e simbólico – a sociedade chilena simplesmente ignora tudo o que é mapuche, “da terra”, local. Minha busca por raízes internas fez-me embarcar rumo ao Peru e ao Equador, onde encontrei mais subsídios que me fizeram compreender algo da cisão que destruiu, por exemplo, um José Maria Arguedas, escritor que passou a infância em meio à cultura do quéchua e que se matou com um tiro de espingarda. Como não entender, por dentro, a recusa da cultura tradicional ao povo pela cultura erudita que sempre fez minha cabeça, advinda de origens diversas e – algumas – duvidosas? Fantasmas outros pareciam surgir em meio à oficina da Confraria, e os escombros deixados entorpeciam.
O matiz “pituco” (fresco) de uma sociedade de costas para o local envernizara, porém, minha relação com o trato social – e eu teria permanecido protegido do suposto “mau gosto”, após fazer faculdades de primeiro nível, se minha biografia não estivesse coalhada de passagens em realidades de mau agouro – passagens essas que me deixam desconfiado sempre que sou defrontado com a oposição entre mau e bom gosto. Não foi necessário, para mim, ler Baudelaire e saber de sua trajetória para compreender a modernidade – e a tosca realidade de se andar na rua, em meio ao povo, levando encontrões que criam calos no espírito e que nos afastam da boa educação escolar. Como não entender, então, a atração exercida pelo cordel e todos seus precursores e sucessores na alma do ser singelo que nunca leu nada mas que tem em si o critério estético de saber o que vale e o que não presta para a alma do sujeito que passa pela rua e ao qual só lhe resta se divertir com demonstrações aparentemente simplórias de artes que remontam ao populacho de milênios atrás, quando a arte apareceu? Como não ficar em dúvida perene ao sentir que aquilo que me fora vendido como valor (a arte tradicional ou erudita) não consegue acender em mim velas num espírito calejado pela necessidade – e incomodado pelo jogo das amizades que fazem a regra no mercado?
Tudo pararia por aí, contudo, se eu não me sentisse vivendo realmente no século XXI, momento histórico em que a aldeia global parece destruir quaisquer liames de autenticidade entre as pessoas, seja qual for o continente em que vivam ou a língua que habitem, por meio de telas de diversos tipos e tamanhos – usadas agora por povos de culturas ancestrais que, como todos os outros, passam a vender o seu peixe em meio às ondas da web. Eu não me engano ao compreender que não vivo no passado nem nas convicções de alguém que recita princípios de conduta ao atravessar a rua. Eu vivo em meio a interstícios do asfalto que podem ou não remontar a significados históricos que outros esposam geralmente com desilusão – mas que no meu caso teimo em não assumir, seja por covardia, seja por incapacidade de aguentar o rojão. Um pedinte me aborda na rua e eu o evito como todo membro de classe abastada – contrariamente a amigos quem sabe menos cindidos mas mais afeitos ao trato cordial subentendido por um Gilberto Freyre de outrora. Eu venho de uma sociedade cujo brasão é “Por la razón o la fuerza” (Pela razão ou pela força), bem entendidos estejamos. Vi bombas de perto. Vi armas, quase vi uma guerra civil – e eu tinha apenas seis anos. Nada demais, claro, para quem – como muitos – viu parentes mortos na periferia – onde não vivi nem vivo – e, venhamos e convenhamos, nem quero viver. Pau que nasce torto...
O que não dizer, agora, contudo, quando acabo de perceber o quanto a linha da sutileza de verdades óbvias e rasteiras originadas de sofrimentos existenciais de matiz diversa insistem em me atrair no trabalho com o grupo que dirijo? Psicodrama que se dane, acabo de notar o desafio que é guiar com mão de ferro espíritos de atrizes e atores incapazes de se enxergarem por meio de cenas realistas ou não-realistas que os obrigam a desabar de forma inapelável – processo que nada tem a ver com a forma pela qual o povo encara a vida – e a enfrenta, contrariamente a ensinamentos de Freud e quejandos.

Constato, porém, nessa minha lide de destruições e autodestruições, que tudo me incomoda quando vejo o quanto a diversão pela diversão, pelo povo para o povo, desmerece toda e qualquer reflexão de cunho abstracionista que tenta, por meio de todo e qualquer recurso, captar a atenção desse mesmo povo que não está nem aí. Refiro-me, é claro, a toda demonstração artística de pretensas vanguardas que no fundo nem sabem o que dizem nem para quem. O teatro popular, nesse sentido – e ao que parece em muitos outros –, não passa nem de longe por questões existenciais. O público está onde a multidão se encontra. A arte está na simplicidade do aparecer aos olhos de quem sabe ver. O incômodo do politicamente correto não manda na lei da rua, que domina a urbe e o mundo. Prefiro rir e chorar a pensar e conectar? Não sei. Um dia saberei? Quem sabe?

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