Assim como Cioran, eu escrevo quando algo me incomoda. Além
disso, trabalho em meu grupo de teatro com assuntos que incomodam os atores
numa dimensão estritamente pessoal. Descobri esse “método” em parceria com
minhas atrizes, que aprendi a atiçar de uma forma ao mesmo tempo contundente
mas sempre suave e respeitosa. Não menciono os meus atores homens porque com
eles algo parece não funcionar. Talvez o fato de ambos seremos homens, eles e
eu, estabeleça uma barreira que eles não se dispõem a ultrapassar com medo de
aparentarem fraqueza.
Mas voltando à questão da escrita. Uma questão que
recentemente tem me incomodado é a oposição entre certos tipos de pessoas.
Há um tipo delas que têm predisposição a uma integridade que
não precisam abandonar e que as leva a aceitarem cada vez mais pessoas em seu
universo e as ajudarem a sobressair, congratulando-se com isso. Essas pessoas
são normalmente tidas pelos amigos como excepcionais, por darem oportunidades
aos amigos sem cobrarem absolutamente nada em troca – apenas, quem sabe, um
assentimento a uma amizade sempre mais sólida e incondicional. A gente lamenta
quando passa meses sem ver pessoas desse tipo, mas tão logo nos encontramos novamente
tudo passa batido, como se não tivesse havido qualquer distância, por maior que
esta possa ter sido. Isso tudo não quer dizer que pessoas desse tipo sejam
ingênuas: não, elas são mais sábias que as outras, por saberem que é com a
verdade que os verdadeiros amigos travam relações duradouras.
Mas há outro tipo de pessoa. Refiro-me àquele tipo de amigo,
às vezes até verdadeiro, no qual divisamos, em seu olhar, quase que somente um
olhar frio de quem não se interessa, realmente não se interessa, em fazer
ninguém ficar ao seu lado. Ao contrário, esse tipo de pessoa “cola” nas asas de
quem o apadrinha e, sabendo que não tem a autenticidade a seu favor, opta por,
passo a passo, realizar gestos que aparentemente a tornam grata a todos os
amigos circundantes, fazendo uso de familiares ou amigos simpáticos a todos
para ela mesma crescer, como se fosse uma pessoa boa, quente, aberta a amigos e
a gente nova. Nada nesse tipo de pessoa é autêntico, e quem acompanha sua
trajetória de perto sabe muito bem disso. Esse tipo de pessoa precisa ter gente
abaixo dela para incensar sua obra, o que para o primeiro tipo de pessoa – do
parágrafo anterior – é desnecessário.
Tenho amigos do primeiro tipo e do segundo. Ontem encontrei
alguns de ambos tipos.
Um deles, do primeiro tipo, que divisei e do qual me
aproximei brevemente, cumprimentou-me como sempre, sem forçar demonstração de
saudade – que expressou várias vezes desde então, mas em privado – e, num
determinado momento do encontro, parando e como que revivendo nossa relação.
Foi algo extremamente sutil que criou uma pausa no tempo e que, ao que parece,
só eu mesmo notei. Percebi então novamente o quão sincera é essa nossa amizade.
Essa pausa, tento me explicar melhor, foi uma espécie de “olhem só o Contrera,
meu amigo”. Mas o tempo corre e ele e eu tínhamos mais o que fazer.
Outro, porém, do segundo tipo, não expressou a menor
disposição em me cumprimentar. Não digo que ele seja realmente falso, ou que
não seja amigo (acho que é), mas, imerso em tentar resolver problemas para se
tornar esse “alguém” que ele deve achar que não é, simplesmente passou batido,
como se à sua frente não houvesse ninguém. Esse cara em particular tem um olhar
frio, lá no fundo de sua psiquê, que a maioria dos amigos cincundantes parece
não ver (parece porque não sei, realmente). Esse cara não faz um único gesto
involuntário – todos eles são calculados, e eu sei muito bem disso porque o
conheço de bem antes de ele se tornar alguém, nesse grupo, digamos, importante.
É difícil acreditar em que ele acredite realmente em alguma coisa, esse outro
amigo. Não digo, contudo, que ele seja inteiramente falso: nesse seu afã de
sobressair, ele realmente assumiu uma opção de vida, e nessa opção que é o
teatro pouco podemos dizer que seja realmente passível de cálculo. Quem apenas
se ocupa em fazer contas dificilmente opta pelo teatro, em suma.
Ao passar novamente nesse ambiente que fez minha vida nos
últimos anos, aprendi bastante coisa, embora tenha permanecido – aparentemente
– imerso apenas em meus problemas, resolvidos por celular. Falei com quase
ninguém, reconheci uma atriz que acompanho há anos mas que nunca antes passara
por lá, fui cumprimentado por vários amigos de bar, e tudo o mais, mas como
quase sempre permaneci alheio, imerso em minha subjetividade.
Poucos deles sabem, porém, que antes de ficar no bar,
praticamente sozinho, ensaiei dois atores (um ator e uma atriz) numa cena que
tentaremos apresentar esta segunda, no Clube Noir. Só o ator presente ao ensaio
sabe também que antes de ensaiarmos eu realmente mexi com algo naquela atriz
que a fez chorar, desconsolada, enquanto o esperávamos. Esse choro – que me
surpreendeu pelo momento em que surgiu – não me surpreendeu realmente, contudo.
Já se tornou habitual ver o resultado que o meu “método” (hesito em chama-lo
como tal) causa, sob certas circunstâncias, nos atores e atrizes com que
trabalho. Assim como é sempre interessante reparar no estreitamento da relação
que quase sempre surge tão logo esses atores/atrizes percebem realmente a
implicação daquilo que faço e em que acredito. Para aqueles a quem conto a
respeito, quase sempre parece como se eu estivesse auferindo vantagens
indevidas de amizades sempre mais profundas, mas esses eu perdôo porque não
sabem o que dizem, muito menos o que pensam. São idiotas, em suma, e sabem
muito bem que não tenho o menor receio de lhes dizer isso tão logo a
oportunidade aparece. Afinal, vivemos numa sociedade falsa, machista, misógina,
em que em última instância praticamente ninguém acha que realmente vale a pena
se preocupar com o outro – ainda mais se for mulher e estiver um pouco perdida
– como muitos de nós estamos, às vezes. Mas mulher é mulher, não é mesmo, e
nessa medida sempre tem o sexo a nos espreitar...
Como resultado daquele breve encontro, e sempre pensando no
além, prometi àquela atriz um monólogo com o qual a gente poderia lhe dar uma
chance de tratar aquela questão, muito antiga, que a fez chorar tão
desconsoladamente. Mas NUNCA PENSANDO APENAS NELA, NA ATRIZ, mas na cena.
Sempre digo, não me tome como amigo de todas as horas: sou apenas seu diretor
que, interessado em sua trajetória como pessoa neste mundo compartilhado, lhe
arranja uma oportunidade de superar questões que, por algum motivo que não me
diz respeito, desarranjaram sua vida como um todo.
É maravilhoso contar com vivências desse tipo neste mundo
que nos avassala e que nos faz ficar sempre à margem, desconsiderados por
aqueles que tanto têm a dever à nossa amizade e, ainda mais, às amizades que os
circundam. Mas é preciso manter uma frieza maior que nenhuma das friezas que
nos acompanham conseguem sobrepujar. Essa frieza, alguns percebem. Mas não
sabem o quando vem acompanhada por calor e por amor verdadeiro. Pena que as
pessoas tenham tantos interesses na vida – o que faz com que elas em última
instância desprezem o que mais vale na vida. Mas eu percebo. Eu percebo.
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