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Frida Kahlo - Calor e Frio (Estelar de Teatro) (Teatro Viga, até 28/9)

Há várias formas de atender aos chamados da latinidade.
Recentemente passaram festivais de curtas latinoamericanos, e o Mirada, festival de teatro que ocorre em Santos a partir do começo de setembro, serve para refletirmos em que medida nossos dilemas vão além de nossas fronteiras nacionais.
O espetáculo Frida Kahlo é outra forma de encarar a latinidade. Pude conferir, pouco antes de entrar, que havia vários espectadores de origem latino-americana hispânica, e não apenas mexicanos ou brasileiros interessados na pintora, ansiosos para ver a latinidade aflorar. Desde o começo o espetáculo promete - o palco é nu, com uma interessante entrada ao fundo, parcialmente iluminado por lustres, e os instrumentos musicais dominam o ambiente (eles irão, quase sem nenhum descanso, acompanhar toda a trama, em parte linear, em parte entrecortada por diversas intromissões da cultura, da história, do teatro em si e muito dançada).
Seria injusto dizer que a peça trama a trama da história de Frida, apenas. Diria melhor que a trama da pintora e de sua relação com Diego Rivera é quase uma desculpa para traçar, com música, dança e teatro, o itinerário do México do começo do século e da latinidade de forma geral, com recurso a imagens típicas daquela cultura e dança. Os europeus ilustres são anunciados, bem no começo da peça, mas percebe-se como eles atuam mais como espectadores de um espetáculo eminentemente latino-americano. Há quem "grave" com câmeras de filmar, há intromissões de ilustres como Artaud, Maiakovski, Breton e tudo o mais, mas desta vez, contrariando essa mania de nos colocarem a soslaio, os europeus assistem embasbacados a trama toda dessa que ficou conhecida pela pintura, sim, mas também e principalmente pela trajetória - quase mítica, como os espectadores são de cara defrontados. Não irei dizer por quê - tiraria toda a graça da peça. Basta ver para perceber como, para Frida, a arte era uma forma de eternidade mítica que superava a própria história e de sua, digamos, raça.
O texto, de Viviane Dias, abrange um amplo leque de interesses e é extremamente agradável vermos como a latinidade pode ser encenada sem necessariamente ser reduzida a clichês. Sentimos esse algo mais que surge de tudo que é bem contado, sem a pecha do folclore tão fácil de impor e de assimilar. Esse algo mais vai até o fim, quando numa espécie de ato de voyeurismo de extremo bom gosto, vemos a imagem da mulher se tornar algo mais que estelar. Muito bonito mesmo.

Não pude, contudo, apreciar o espetáculo em toda a integridade, dado estar também acompanhando o trabalho de luz do Jorge, ao lado dele, na mesa de som. Mas mesmo assim foi possível apreciar bastante bem a integridade do trabalho. Fica até final de setembro no Viga. Tentarei também ajudar na divulgação. 

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