Pular para o conteúdo principal

Oficina Ulrika Malmgren (Suécia) - Relatório final



Uma breve consideração. Acompanho o teatro, de forma mais ou menos profissional, desde 2007. Participei de ensaios com Gerald Thomas, oficinas com o Redimunho, o Núcleo Bartolomeu e o Cemitério de Automóveis, e peças com estes últimos. Apresentei textos meus em diversas Satyrianas e DramaMix, uma peça longa numa escola (gravada), e mais de 10 cenas para duplas e trios em bar. Tenho um grupo informal de teatro. Fiz oficinas de corpo com Diogo Granato, de interpretação com Lulu Pavarin e Marcos Loureiro, e aprendi muito com o Marião, do Cemitério. Tinha feito oficinas de palhaços, e já experimentara uma certa queda de meu trabalho pelo histriônico, grotesco e fuga do simples realismo. Não tenho – ainda – muita paciência, até por minha idade, com o artesanato da construção de personagens.
Quando me motivei a participar da oficina da Ulrika, pensei na necessidade de improvisação controlada, na possibilidade de aprender com especialista da Suécia, terra do Bergman, e na possibilidade de fazer uma oficina em inglês (minha primeira). Procurei sobre o instituto da Ulrika mas só achei material em sueco. Não entendi qual seria o foco da instituição.
Cheguei na segunda aula – não pude mesmo participar da primeira – com receio de ser meio que considerado indisciplinado ou eXperto (no mau sentido). Mas fui abordado com gentileza e respeito. Como vem se dando com frequência, fui o mais velho da turma. A professora já conversou direto comigo, sem qualquer intenção de cobrança, e meio que pareceu se surpreender com minha experiência, que considero pouca mas que é intensa. Trocamos ideias sobre autores, e ela falou, de moto próprio, em Boal, que para mim não interessa em particular. Falei de Beckett e Brecht, e ela pareceu não se interessar em especial por eu conhecer seu (deles) trabalho. Apesar do breve desencontro entre ela e eu, que já pode motivar leituras diversas, eu mesmo nunca considero que, ao menos enquanto autoria, o que é feito lá fora tenha necessariamente de ser considerado melhor do que qualquer coisa feita aqui, até pela assincronicidade do espírito criativo, clara durante a história mundial, e confesso-lhes que o fato de me dispor a aprender a partir de instituição estrangeira me irrita, embora abra-me geralmente a qualquer aprendizado. Se o curso fosse sobre dramaturgia, eu não me inscreveria, como nunca me inscrevo. Fique claro que não considero nada necessariamente ruim no aprendizado vindo de qualquer parte do mundo; mas sabendo-me parte de um continente (nasci no Chile e sou brasileiro desde 1992) colonizado por europeus, e tendo feito mais de 16 anos de cursos na USP, de inspiração francesa, considero que NÃO NECESSARIAMENTE o bom aprendizado em termos de sensibilidade (somos atores com corpus de aprendizado geralmente desenvolvido na Europa e Rússia, além de nos EUA) tenha de vir de lá, nem da civilização dita avançada (o polonês Grotowski aprendeu, por exemplo, da Ásia, América, sociedades ditas atrasadas, e criou seu corpus a partir desse aprendizado, mundial, APÓS conhecer Stanislavski na própria Rússia).
Ulrika pediu que me apresentasse e o fiz, mas – como quase sempre – meio que passando uma impressão de ego excessiva, algo contra o que trabalho o tempo todo (quase sempre sem sucesso). Vi que a turma era bastante ampla e heterogênea, e que os membros ora tinham relativamente pouca experiência ora sua experiência eu não conseguia mensurar ou considerar.
Lembro-me, porém, de que antes de entrar no segundo dia de aula, eu encontrei o Arthur no térreo e ele me disse que iríamos trabalhar um texto, esse do Lars Norén, que eu não conhecia (nem o texto nem o autor). Na verdade, não conhecia nenhum autor sueco, pelo que me lembro (não sei a nacionalidade de Jon Fosse). Não necessariamente gostei ou desgostei de trabalharmos com um autor de lá.
Nessa segunda aula, foram feitos aquecimento e alongamento de uma forma que eu não conhecia. Ocorre que eu sempre me submetera a práticas de alongamento/aquecimento por parte de instrutores e/ou fazia exercícios próprios, que vinham de meus 5 anos de karatê na década de 90 (isto é importante porque eu praticamente não tenho treinamento em outro tipo de linguagem corporal, e sempre fui o reserva do goleiro, se me entendem, daí que quase sempre acabo recaindo nos movimentos de uma luta marcial, não feitos para o teatro, necessariamente). Claro que, por motivos meus, sou uma pessoa de caráter incisivo ou mesmo meio violento (não me refiro a violência física), mas isso não necessariamente deriva do karatê.
Não me lembro muito bem dos movimentos sugeridos por cada um dos presentes na roda do aquecimento. Nem me lembro se a Ulrika fez alguns movimentos padronizados antes ou depois. Só lembro do interesse despertado pelo movimento de cada um, aquele que cada um sugeria, para todo o grupo, e de como o movimento de cada um refletia a expertise e a limitação de cada um. A este respeito, tenho a acrescentar que TODOS os exercícios de aquecimento/alongamento e mesmo de treino de que participei SEMPRE utilizaram, APESAR de muita ressalva e mesmo compreensão de quem puxava o treino, a noção de que havia o movimento CORRETO, e ainda mais, que havia OS MOVIMENTOS CORRETOS a fazer para tal ou qual tipo de alongamento/aquecimento, e que portanto nos restava (a quem fazia os movimentos) apenas fazê-los ou da forma CERTA ou da forma mais certa possível. Nesse sentido, nunca houve, em minha história de aquecimentos/alongamentos, realmente a possibilidade de sugerir alguma coisa, e muito menos sob um ponto de vista pessoal. Faço um paralelo com uma aula tradicional, digamos, de filosofia, em que, se fôssemos seguir a analogia, seria possível, a um aluno qualquer participante, citar uma frase, por exemplo, de alguém ou mesmo de ninguém, para todos, e sugerir – ou mesmo obrigar – que ela fosse repetida, por todos, seguindo os parâmetros de qualidade do aluno. Pois bem, isso nunca existiu e nem existirá. Mas foi isso o que fizemos naquele alongamento/aquecimento. Pode parecer que exagero, e até certo ponto é o que faço mesmo, mas realmente para uma pessoa com bastante dificuldade em lidar com o próprio corpo – algo que desde sempre me aconteceu – e que sempre submeteu-se a exercícios de tipo correto/incorreto tentando alcançar bons resultados e não conseguindo, a possibilidade de sugerir movimentos acaba assumindo uma importância no mínimo elevada. Mas não foi nesse momento que isso aconteceu. Naquele aquecimento, eu vi pessoas desconhecidas sugerindo movimentos de aquecimento/alongamento e vislumbrei a possibilidade de conhecer o universo corporal deles a partir desses movimentos, começando assim a descobrir o outro em suas variadas formas e expressões. Por exemplo, o Pedro sugeriu, duas vezes, durante a oficina, um movimento específico de pegar uma parte do corpo e deixar que ela nos guiasse. Isso, somente isso, fez-me vê-lo com uma propriedade específica em termos corporais, e que me motiva a sugerir-lhe cenas ou mesmo papéis específicos, além de me facilitar, enquanto ator, a lidar com ele. Só como um exemplo. Outro aspecto interessante é que, na medida em que outro colega faz o exercício, e o propõe, a gente se sente muito mais à vontade para fazer de nosso jeito e não se cobrar o jeito certo de fazê-lo, o que também diz respeito ao tempo dedicado ao exercício.
Lembro-me que, em seguida, continuaram (eu comecei, a partir de certo momento do texto) a ler o texto de Norén. E cada um lia um trecho, sendo que no começo a professora determinava quem leria, com base em critério absolutamente arbitrário – não parecia haver critério, na verdade, ou seja, não necessariamente quem lia “melhor” poderia lê-lo, ou quem leria com mais ênfase, etc. e tal –, para depois ela determinar que poderia ler um determinado trecho quem quisesse e se dispusesse a isso. Um detalhe interessante, no primeiro momento desse tipo de leitura, é que houve quem se dispôs a ler num determinado momento e ela desconsiderou. Achei que isso tivesse sido por ela não entender que ele queria, ou que ela desconsiderasse que ele estava na ordem, mas não parecia isso. Ela simplesmente escolhia arbitrariamente e depois deixava com todo mundo a noção de quem iria ler. Nesse sentido, o texto passava do controle dela para um controle muito sutil nosso, sendo incorporado por nós. Achei que ela fora bastante grossa em um ou determinado momento, mas não me incomodei, como nunca ou quase nunca me incomodo com grossuras por parte de autoridades que fazem jus ao nome (mas me oponho violenta ou agressivamente quando a autoridade não faz jus ao seu nome).
Outro aspecto interessante é que já naquele momento – era a segunda aula – a professora, que nunca nos tratou realmente como tal, como professora, com toda a carga de autoritarismo que às vezes o cargo pode demandar (indevidamente, porque autoridade é uma coisa, e autoritarismo outra), até pelo perfil da pessoa (sobre o qual falarei depois), deu às pessoas a liberdade de escolher personagens, desde já aproximando-nos dos personagens que iríamos de alguma forma incorporar depois, ou tentar, cada um de nosso jeito. Lembro-me bem de como certas pessoas sentiam-se bastante à vontade falando com o português de Portugal da peça traduzida naquelas bandas, e como alguns questionavam já, embora de forma sutil, o uso de determinadas palavras, e tudo o mais. Mas algumas pessoas pareciam sentir-se bem e outras nem tanto com os personagens que escolhiam, sem saberem que isso poderia ser importante futuramente, na medida da escolha dos personagens. Foi também bastante interessante, naquele momento, ver ou simplesmente constatar de que forma aquela trama, bastante forte, da peça, mas que de alguma forma não parecia mais tanto me bater (passei por algo similar em minha família), afetava as pessoas presentes de forma diferenciada. Lembro-me em especial do rosto da Júlia após a leitura, como se tivesse sido obrigada a digerir algo meio indigesto ou de mau gosto. Mas houve outros momentos de outros membros da equipe, que na hora me impressionaram mas de que me esqueci temporariamente (foram momentos bem cativantes). Interessante foi também que aqueles momentos em que a peça afetou as pessoas iriam retomar em minha memória à hora de fazer alguns dos textos combinados.
(Confesso que agora eu me emociono, ao ler o currículo de Ulrika, por meio de um perfil publicado na página da SP Escola. Pois houve realmente algo de efetivamente emocionante em todo o processo, e algo que, eu percebi, iria deixar marcas para o futuro, como tentarei ver e experimentar)
Embora tenha copiado em imagem a tábua de conteúdos apresentados no curso, agora ela me parece abstrata demais para dar conta da complexidade do que se seguiu. Sei apenas que naquele momento eu vi a tábua, não a copiei nem fotografei, mas me convenceu de que havia um norte distante da improvisação em toda essa oficina. Pois, embora atue (escreva, atue e dirija) tendo como grande base no improviso, detesto o improviso sem rigor ou a ausência de rigor em meros segundos de vida. Sei, estou sendo radical demais, e vida é para ser vivida; só sei que o planejamento me acalmou. Uma questão importante também foi que NÃO me dei bem com todos os colegas de chofre. Ao contrário. Creio que na defesa (ainda), acabei imaginando posturas que iriam se mostrar bobagem, e com isso acabei meio que me afastando temporariamente da energia do grupo por duas vezes, durante as três semanas. E isso foi interessante, pois todo aquele que trabalha com teatro sabe o quanto isso é importante para mensurar a energia no palco e no espetáculo.
Na aula seguinte, os trabalhos foram mais práticos. Pelo que me lembro – não fiz anotações –, o trabalho, após o aquecimento/alongamento (que se deu meio que da mesma forma), consistiu de três partes. Uma primeira, em que escrevemos um texto sobre uma pessoa familiar que tivesse algo a ver com um personagem da peça (por favor, pessoal, me digam se a proposta era essa mesma, porque foi isso que eu guardei) – usando a deixa de um trecho da peça que nos lembrasse disso. Lembro-me de que eu perdi um dos exercícios de escrita, talvez o primeiro, e que nessa base eu não estava tão a par das energias e potencialidades envolvidas no exercício. Fato é que, com o passar do tempo, Ulrika disse-nos que essa técnica tinha a ver com uma chamada escrita instantânea, que serviria para nos aproximar de nós mesmos e de nossos personagens. Ocorre que, no meu caso particular, eu assumo há algumas semanas ou meses esse mesmo tipo de técnica, mas por motivos diversos, enquanto escrevo no computador. Esta técnica tem o motivo de escrever o texto resultante tão rápido e enviar tão rápido que me impeça de argumentar controlando os argumentos e, portanto, de existir uma possibilidade, mesmo que remota, de mentir. Ocorre que pela técnica proposta pela Ulrika a energia acabou sendo diferente e mesmo o resultado também diferiu, de alguma forma, em quesitos aos quais não consegui me ater com devida atenção. A técnica assumida por mim enquanto escrevo no computador teve motivações muito pessoais que não cabe discutir. Mas deu para perceber, desde o começo, que a técnica proposta pela Ulrika tinha algo a ver com a incorporação em nós, em nossa vida, da trama da peça e de algumas características de personagens ainda não definidos. Claro que isso tem, de alguma forma, tudo a ver com a técnica stanislavskiana, na medida em que trazemos o personagem para nossa vida e jogamos nossa vida no personagem, mas isso não estava ainda tão claro quanto poderia estar (vou tentar esmiuçar alguns detalhes posteriormente). Em seguida a escrevermos o texto, que está logo abaixo, a questão era engatinhar. Mas vamos primeiro ao texto.
Texto
Meu pai nunca falou conosco em inglês. Ele se achava escocês pelo sobrenome Campbell. Ele aprendera inglês sozinho. Eu sempre tive dificuldade com o inglês. Daí os EUA ajudaram a derrubar o Allende. Precisamos ir embora. Comecei a antipatizar com a língua. Fiz vários cursos e nunca aprendi direito. Hoje não tenho mais paciência com ela. Gosto do inglês da Inglaterra. E do inglês dos criminosos. Canto músicas em inglês quando sei a letra. E invento letras quando não sei. Confundo as palavras. Gosto das palavras feias. Gosto mais do alemão. Não entendo alemão. Elas têm tudo a ver. Começo a relembrar do meu pai. Ele morreu bêbado.
Fim do texto
No meu caso em específico, preciso que vocês entendam que a questão do meu pai dizia respeito claramente à do personagem Martin, da peça, um bêbado que passa o dia a trabalhar e que não consegue pagar as prestações da casa em que vive com a mulher e os dois filhos, sendo que estes não o respeitam de diversas formas. No caso do texto, peguei bem o começo da peça, na primeira fala de Martin, em que ele cumprimenta os filhos com “Good morning”, mas um good morning falso, ou falsificado, e o fato de meu pai ter se achado escocês a vida toda, saber inglês até mais do que as outras línguas mas não se dispor jamais a falar conosco nessa língua nem a nos ensinar nada. Essa questão, no momento da escrita, não era tão forte enquanto mágoa, confesso, mas enquanto escrevia ia assumindo caráter mais sério e potente. Tanto que o texto ficou estranho, quase sintomático da época atual. Um aspecto então que acabou se revelando DURANTE A PRÓPRIA ESCRITA foi que aquilo que parecia estar recôndito (escondido) em mim, ou mesmo tendo sido ultrapassado (falsamente, como vi), mostrou-se mais potente do que nunca. A questão do inglês, por outro lado, pegava-me de diversas formas na ocasião. Primeiro, porque o good morning da peça levava naturalmente a ele. Mas também pelo fato de ele, na peça e na vida real, assumir um caráter de ironia, e, portanto, muito forte, em minha vida e mesmo na peça (embora aqui aparecesse quase imediatamente, sem dar muito a o quê refletir). Outro aspecto relevante do inglês era o fato de esta oficina ser a primeira, mesmo, que eu fazia em inglês, e, portanto, que minha expertise seria colocada em questão também por meio disso, do domínio dessa língua. Um aspecto adicional é que, sempre que o inglês é colocado em questão, em termos de meu domínio dele, atinge-me de forma indelével uma sensação de impotência e de constrangimento de que considero quase impossível de me escapulir, e isso porque, conforme podem ver pelo próprio texto, o inglês remete a questões geopolíticas, nas quais fui formado, a questões da ordem da sociabilidade (gosto do inglês supremamente alto, por diversos motivos, inclusive fonéticos, e do inglês supremamente baixo, de criminosos, por motivos muito similares, o que diz respeito também a minha trajetória biográfica – que porém não vem muito ao caso aqui).
Outro aspecto relevante aqui é que, conforme pode se perceber, o encadeamento das questões relativas ao texto e ao trecho da peça que me disse respeito, na medida desse tipo de escrita instantânea, segue uma lógica que parece escapar da lógica costumeira, dado que não busca a justificação de posições em si, mas o surgimento de aspectos aparentemente escondidos que passam a dominar o texto e a conduzi-lo a um final que não se sabe muito bem qual seria. Esse tipo de conexão não é promovida quando escrevo no computador, fique claro isso, porque – creio - mesmo que eu escreva a todo vapor ainda tenho, enquanto escrevo em teclado, a possibilidade do encadeamento razoável, enquanto ao vivo, no meio do palco em que ensaiamos, a pressão é ainda maior e não dá realmente tempo nem espaço para pensar, refletir ou justificar.
Eis que, por outro lado, logo a seguir, houve um fator a mais de complicação no exercício da noite que realmente passou a fazer toda a diferença. Pois, depois dos 6 minutos doados para escrevermos aquele texto, aconteceu que Ulrika sugeriu que ficássemos no meio do palco, em duas fileiras paralelas, e que passássemos a engatinhar, suavemente, numa trajetória que voltava ao começo, seguindo uma espécie de retângulo imaginário. Falando assim, parece até bobo. Mas acontece que, na medida em que o exercício era feito, ocorreu em mim uma sensação que até agora me deixa um pouco confuso – só um pouco. O exercício deveria ser feito com calma. A gente andava em fila indiana, um atrás do outro, engatinhando, sem olhar para a frente ou para os lados. A questão era a gente se encontrar, andar ensimesmado mesmo, como se – ela explicou depois – a gente tivesse voltado à fase do engatinhar. Foi quando, após uma ou outra volta naquela parte da sala, comecei a me sentir meio confuso e a cair para os lados, como se realmente não tivesse que andar para a frente ou para os lados, como se eu pudesse realmente cair e ficar por aí, caído, sem função. Eu estava bem, em termos de energia, não estava muito cansado, mas era como se eu, nesse exercício, tivesse, ao menos temporariamente, desistido de TER DE andar, DE TER DE continuar o SERVIÇO, de precisar aparentar estar trabalhando ou fazendo algo com uma função ou direção. Eu nunca, nos últimos 20 anos, me sentira assim, meio que SEM FUNÇÃO, como se estivesse na gratuidade da infância. Foi bastante interessante, isso, e foi confirmado logo depois por uma fala da Ulrika, em que de forma muito singela ela dizia por que é que não podíamos novamente nos sentirmos como crianças? Na volta, então – o exercício tinha 3 fases, e agora vinha a terceira –, fomos convidados a escrever novamente, e agora sob o mote de dizermos, em 6 minutos, por escrito, por escrita automática, em que a leitura da peça ou mesmo a peça havia nos incomodado. Neste exercício, fiz o seguinte texto, que batizei de Incômodo e que faz parte de meu corpus de textos dramatúrgicos (inclusive, será apresentado como monólogo):
Texto
Incomodou que nada tenha incomodado. Pois vi isso. Não vi tanto, tão forte, mas senti assim. Incomodou-me de não ter rido mais. Pois tentei rir e quase ri, mas não ri. Incomodou-me a língua próxima e estranha. Mas não a peça. Incomodou-me que Martin e David fossem eu mesmo. Mas isso no fundo não me incomodou. Há um incômodo estranho em nada realmente me incomodar na peça. Mas incomodou-me que ninguém parecesse se incomodar. Incomodou-me que os incômodos que vi fossem tão leves e profundos. Mas na peça nada me incomodou. Mesmo. O incômodo é mais estranho.
Eu sou o incômodo.
O incômodo é uma coisa e ela sou eu
Foda-se a peça. Obrigado, peça.

Fim do texto
Depois de cada um fazer esse segundo texto, todos foram convidados a dizê-lo em voz alta. Ou quase todos, pelo que me lembro. Ulrika não entende português, e até o fim da oficina lamentava isso, por, aparentemente, segundo ela, ter perdido bastante de algo que lhe interessava nessa exata medida. E ficou lá, com a intérprete, mas sem poder cobrar-lhe esse tipo de tradução simultânea, vendo cada um expressar seus sentimentos por meio daquele papel, daquele texto feito na hora. No meu caso, quando o disse, quando disse o meu texto, fui como sempre desde que passei a encarar o mundo como um touro que preciso domar com minhas unhas presas ao seu dorso. E falei o texto com postura forte, na qual vacilei um pouco ao final, quase chorando, mas sem chorar. Lembro-me de que saiu uma pequena lágrima e que ela estava bastante atenta à minha declamação, e que se emocionou, ali do seu jeito.
No caso do texto, a importância de todo esse processo foi fundamental em sua criação e no resultado, reparei depois, pelo fato de me revelar, tão logo li o texto com calma, qual havia sido meu sentimento durante os 10 anos em que meus pais e nós, irmãos, brigávamos, e que não se havia (o sentimento) restrito ao fato de ter saído magoado ou alquebrado. Eu me sentia como incômodo, a partir do incômodo de não conseguir mais (agora) me incomodar com isso. Passara a incorporar um sentimento forte demais de inadequação com qualquer lugar em que passei a me colocar. Um aspecto interessante a mais, durante a criação, foi o final, em que as três últimas frases meio que se impuseram, surgindo sem motivação racional. E isso, lembro-me, causou um efeito fundamental, na medida em que houve risadinhas e ao mesmo tempo em que pude, com esse tipo de expressão, sair do aspecto mais reflexivo e me colocar enquanto pessoa com interesses mais rasteiros, tipo o que acho dessa coisa, afinal, e o que devo fazer com isto, no caso, foda-se e obrigado. Foda-se e agradecimento.
Hoje reflito nisso que tanto me chamou a atenção no método ou nos pressupostos do método de um Grotowski no começo de carreira – porque depois ficou tudo tão complexo que meio que perdi o horizonte e até mesmo a paciência e a compostura. E como é que deve ser que o diretor que segue esses pressupostos de livre e espontânea vontade utiliza seus recursos para aproximar-se de si, do outro, do ator, do autor, e todos, assim, desse jeito, de um compartilhar de experiências que levaria todos a lugares aparentemente inviáveis e até então simplesmente inexpugnáveis. E reparei então como aparentemente, neste processo, tudo foi fácil, pelo menos até então. E como isso já me afetava enquanto pessoa e enquanto autor e enquanto ator. Foi interessante perceber isso, mas ao mesmo tempo foi estranho, pois parecia aproximar-se de mim um panorama a ser devassado que iria me devassar. Decifra-me ou te devoro.
Começava a impor-se, no processo, porém, também, outra questão, que era a do outro, ou seja, a da alteridade. Pois, desde que comecei a entrar no teatro pela via do diálogo, e não simplesmente da imposição, a mim e ao espetáculo, daquilo que eu vivenciava dentro de mim e que me incomodava a tal ponto que devia sair, percebi que haviam formas pelas quais eu conseguia e outras pelas quais eu não conseguia, acessar o universo alheio e que isso, esse processo, afetava demais, por consequência, minha relação interna e com as coisas, não necessariamente então apenas com as pessoas. Num processo íntimo recente, desvinculado do teatro, percebera em determinado momento o que era o amor, que segundo Deleuze seria uma espécie de navegação no universo alheio sem intrometer-se demais em suas (dele) regras e funcionamentos, mas deixando que ele nos interferisse e que o mesmo acontecesse por consequência com a outra pessoa ou ser vivo. Se amor é isso, então, o processo de intromissão por meio de meios criativos também o envolveria, de certa forma, e eu mesmo já experimentava algo assim, no trabalho com o meu grupo, que não cabe esmiuçar aqui, por outro lado.
É triste constatar, contudo, que não me lembro muito bem de alguns dos detalhes que levaram à escolha dos personagens, e na verdade não me lembro muito bem dos insights respectivos que levaram a que nós escolhêssemos os personagens que depois iríamos desenvolver. Esse processo, especificamente, ocorreu muito especialmente na aula a seguir, em que, a partir de um input no sentido de, por meio de exercícios em parte físicos, nos direcionarmos àquele personagem na peça que mais nos tocava, nos separamos em grupos, quatro em suma (são quatro personagens), e escolhemos um parceiro com que compusemos uma dupla a partir da qual nos interpelamos numa espécie de entrevista. No caso, peguei Leonardo, que havia escolhido o personagem David. Aqui, é preciso explicar uma coisa bastante pessoal. Quando Ulrika pediu para que a gente escolhesse UM personagem, eu vacilei, dado que, por um lado, queria vivenciar o personagem mais parecido àquele que havia sido o meu pai, Guilherme, e por outro lado queria o desafio de reexperimentar o lado garoto rebelde que David, outro personagem, incorporava. Note-se que no auge das brigas e discussões na minha família, eu realmente havia me revoltado e me tornado um sujeito que saía de moto por aí, que reclamava sempre que era cobrado ou mesmo interpelado, que praticamente não tinha amigos, que frequentava puteiros à noite e que, quando contrariado, retaliava riscando carros do estacionamento, furando seus pneus ou fazendo alguma outra traquinagem. David parecia ser um embrião daquilo em que me tornara naquela época, e confesso, hoje, que na hora esse personagem me atraía bem mais do que o Martin, no caso, o meu pai. Já na entrevista com Leonardo, tivemos que optar. Podíamos, ele e eu, bancarmos dois Davids se interpelando, mas eu decidi, na hora, e até pela minha idade maior que a dele (tinha 47 anos, hoje 48, e ele 31 ou 32), optar por fazer o Martin na entrevista – era uma decisão temporária, pois não me decidira realmente encarnar o Martin posteriormente.
A entrevista foi delicada e forte. Eu não vacilei e disse ao Leonardo que iria pegar pesado, e ele na hora topou e depois assim foi sendo nosso relacionamento enquanto personagens. Na hora, eu não havia ainda sacado muito bem quem era o David. Eu sabia que Martin era um bêbado incorrigível, e a esse respeito eu já tinha uma ideia do que pensar a respeito. Pois além do meu pai eu tinha meus colegas do Teatro Cemitério de Automóveis, alguns deles bêbados de cair na rua e de ficar até a perda dos sentidos no bar e voltar ainda dirigindo carros, e que aprendi a conhecer e a deles me amigar de forma bastante compassiva. Mas David era uma incógnita por alguns motivos: no final da leitura da peça, numa aula anterior, eu perdera as referências. Não sabia, sei lá por quê, o que estava acontecendo e não entendera muito bem o enredo, assim como os personagens. Na hora da entrevista, David me era apenas, então, um jovem revoltado – nem imaginava a idade dele, do David –, e nesse sentido ele não entendia o comportamento do pai, muito menos sua condição de filho de bêbado, e além disso EU não entendia em que medida ele se diferenciava do Jorge, outro filho daquele casal. Eu achava na hora que David era o mais violento dos dois filhos, mas isso, estava claro, não era verdade. Por outro lado, eu lembrava que o pessoal comentara sobre as cenas violentas da peça – que eu não lera por ter faltado –, e eu, de alguma forma, imaginara que a violência havia partido de David, e não de Jorge, que para mim era apenas um cara que trabalhava e vivia de uma forma mais pragmática e sincera, sob o ponto de vista tradicional de uma sociedade produtiva. Na hora da entrevista, portanto, eu via em Leonardo um misto de David com Jorge, e me lembro bastante bem que ele assumia, na hora, um comportamento de curiosidade para comigo, para com Martin. Na hora da entrevista, ele me perguntara por que eu fazia o que fazia, ou seja, por que bebia, e eu lhe respondera com base em minha sensação sobre o que é um bêbado: no caso, um sujeito já morto, que não foi, contudo, enterrado. Um cara além da esperança, que passa a carcomer seus momentos mais bonitos em prol de algo que ele não sabe o que é mas que sabe que no limite responde pela sua própria morte. Um sujeito que superou todos os limites do mais baixo e que nem mesmo consegue mais enxerga-los. Um sujeito a par de sua condição de pária absoluto, e que nem liga mais para o que irá lhe acontecer, porque no fundo já mais nada lhe acontece. Um morto não enterrado, um cara além da ideia de esperança pelo simples fato de que ele já esperou, já fez o que podia, e que era ainda mais do que ele imaginava, e que, independentemente dos resultados, superara a linha e ficara lá, morto, esperando um enterro que não vinha e que a bebida lhe relembrava, como se fosse ela (a bebida) uma espécie de bola de cristal. Lembro-me de que o Leonardo de certa forma se respondera com a resposta, que eu lhe dei bastante friamente, como costumo fazer quando falo a verdade.
Acreditem em mim, eu fiz a entrevista com o David/Leonardo, e ele comigo, e eu não consigo lembrar o que aconteceu a seguir. Ocorre, contudo, que essa divisão entre Davids e Martins me pegou realmente de forma pesada, e não consegui lidar muito bem com isso nos dias e semanas seguintes. Lembro-me de que os alongamentos/aquecimentos continuavam com aquela mesma energia contagiante de, por meio deles, perceber como os outros eram e se comportavam em termos de movimentos pessoais e valores enquanto pessoas diferenciadas, e que num outro momento a gente começou, por meio de exercícios de interrelação pessoal, confrontar a imagem com que cada um, enquanto personagem/pessoa, respondia em relação a todos os outros. Sabíamos então que existiam por ali pessoas/personagens em busca de uma entrega pessoal (enquanto pessoa) e de uma definição artística (enquanto pessoa/personagem e linguagem por meio da qual ela viria à tona), e que na medida em que o trabalho se tornava colaborativo, isso influenciaria o resultado profissional (na oficina) e as formas pelas quais as pessoas se enxergavam com ou sem a influência da trama da peça. Nesse processo, então, que agora tenho uma dificuldade imensa de relembrar e recuperar, muitas coisas específicas aconteceram, sendo que algumas delas viriam a influenciar fortemente meu relacionamento com as pessoas envolvidas no processo. Lembro-me de algumas dessas coisas.
Uma dessas coisas aconteceu num alongamento/aquecimento. Não me lembro quem foi que sugeriu, mas lembro-me de que, num determinado momento de um exercício em que tínhamos de olhar a outra pessoa nos olhos, de uma distância considerável, aproximarmo-nos e com isso encararmos sua energia, eu tive um contato visual muito forte com a Aline e outro com a Júlia (cujo nome aliás eu simplesmente desconhecia). No caso da Aline, sempre me “perturbara” (num sentido leve) a postura dessa garota que dominava um inglês perfeito, por um lado, que falava com um jeito forte e cuja arrogância suave me incomodava, por outro, e que parecia ser uma garota com estofo, no sentido de ter uma família bastante bem constituída, com antes e depois, ou seja, com pessoas de família historicamente localizada, e que, portanto, deveria possuir segurança quanto ao seu lugar no mundo. Dado que eu pareço ser alguém meio oposto (membro de uma família nuclear que quase explodiu para sempre após os problemas de meu pai com a psicose e a bebida, separado, e em busca de si vivendo sozinho uma cidade afastada, embora bastante relacionado socialmente com as pessoas dessa cidade – desenvolvo trabalhos de jornalista investigativo nesse local, e começo a me relacionar com outras pessoas, mulheres, inclusive), decidi, na hora, até pelo meu caráter provocador e incisivo, encarar a Aline de longe com uma força maior do que de costume, tudo apenas no olhar. Na hora do exercício, notei que ela realmente vacilara, ficara meio insegura, mas que, após um diálogo de olhares bastante intenso que levou bastante tempo (ao menos pelo que me lembro), ela finalmente conseguia me expulsar e se safar da energia provocadora – a partir, isso é muito importante, a meu ver, de seu real perfil social, sobre o qual, aparentemente, não me enganara. Pois bem. Tudo pararia por aí se eu não tivesse tido a iniciativa de lhe dizer isso em um dos intervalos da aula. E eu lhe disse. E ela ouviu atentamente e se deixou realmente afetar pelo meu relato. Claro, se isto – este relato – tivesse apenas a intenção ou o objetivo de falar sobre duas pessoas, teria um alcance deveras limitado. Mas, como, ao responder a ela, e ao ela se deixar afetar por aquilo que eu fizera, estávamos no fundo respondendo a como o processo nos afetara, este relato passa a assumir um alcance maior. Isto só para lhes dizer e tentar garantir que eu não estou perdendo o limite das coisas, que eu continuo simplesmente fazendo uma espécie de relatório objetivo-subjetivo do processo desenvolvido pela equipe a partir das indicações da professora Ulrika.
Não posso nem devo comentar o que eu disse realmente à Aline, mas digo apenas que a mensagem geral foi que eu assumi aquela postura agressiva por opor uma pessoa com bagagem histórica e familiar que parece lhe dar segurança e empáfia (o que me incomodava, embora pouco) (Aline), com toda a segurança que uma pessoa com antes e depois incorpora em seus movimentos, com uma pessoa como eu, sem isso mas com a intenção forte, traduzida em atos, de criar essa conexão com os gregos, os latinos, a tradição europeia, a tradição do lugar onde nasci, o Chile, a tradição daqui, do Brasil, minha condição sociológica, filosófica, mental e íntima, para justamente conciliar essa história, construída, com minha história factual, feita a base de segurança e insegurança, assim como com uma intenção transformadora e ultraconservadora, ao mesmo tempo. Parece arrogante, e é claro que é. A Aline ouviu muito calmamente e pareceu, ao menos no momento, bastante impressionada. Conversamos depois, outro dia, e realmente aquilo afetou ao menos a imagem que ela tinha de mim. Note-se que, na segunda aula, Ulrika deu-me espaço para sugerir uma coisa á turma, que foi rejeitada, mas que foi avaliada, e eu era bastante agressivo nisso tudo, dado haver faltado na primeira aula e nem dado satisfação a ninguém. Ulrika foi clara, segura, prática e adorei sua postura. Uma admiração inconteste de minha parte.
Ainda sobre a conversa com a Aline. No caso da peça, considero que existe uma forma toda apriorística de as pessoas de forma geral enquadrarem o caso de um sujeito que se mata de beber, e que mata com isso também sua família. Não direi quais são minhas posições a respeito, mas considero que, em parte, ao me dirigir à Aline, foi, no processo, também com o intuito de dizer-lhe que ela não saberia nada de pessoas como eu, e, portanto, de pessoas como Martin, o que eu acho que na maioria das vezes é verdade na vida real. Pois poucos realmente sabem como é ser esquizofrênico, como eu sou, e se metem a falar a respeito. Ou poucos realmente sabem o que é passar a vida com gente como meu pai, que no final das contas realmente se matou sem conseguir resolver seus problemas, e etc. e tal. Ou seja, neste caso, da conversa com a Aline, eu devia estar fazendo um esforço para ela me VER como eu já a via e que ela me visse como realmente um OUTRO distante de seus pré-julgamentos, o que afinal de contas se mostrou válido, tanto que finalmente conversamos. E até bastante, dadas as limitações.
Outra pessoa que olhei nos olhos bastante bem e que me causou uma forte impressão foi a Júlia. Mas foi por outro motivo, qual seja, o fato de que ela respondeu com singeleza no olhar, o que iria se expressar bastante bem em seu desempenho no palco, que eu vi com bastante atenção. A Julia teve, na hora do olhar, uma forma muito sutil e até tímida de se desvencilhar, e isso ficou bastante claro no papel de Martin que desempenhou nas últimas sessões da oficina.
As sessões da oficina continuavam e sempre era dada uma atenção especial ao alongamento/aquecimento. Numa determinada noite, eu achei que iria propor um movimento meu, mas não aconteceu. Noutro dia, propus um movimento de alongamento do karatê, absolutamente fora de lugar, mas que era aquele que eu conhecia, afinal. Era um movimento de estiramento absurdamente exagerado, mas tudo bem. Noutro dia, enquanto a gente fazia o aquecimento/alongamento, Ulrika pediu que cada um sugerisse uma sequência de movimentos, mas que, por um lado, estivessem relacionados ao personagem que havíamos escolhido, e por outro, que fossem justificados por todo aquele que o sugerisse. Ou seja, era agora por via do movimento, que os outros teriam de tentar replicar e entender, cada um do seu jeito, que o aspecto pessoal do personagem viria à tona por meio da subjetividade corporal do ator, e mais: que isso teria de ser justificado, ou seja, explicado quanto ao seu porquê. Não poderia ser qualquer movimento, em suma. E se fosse teria de ser explicado, ou seja, ficaria claro em que ele consistiria: no fundo, em nada. Fizemos alguns movimentos. Daí chegou a minha vez. Confesso que eu não via a hora de sugerir algo. Mas só me vinham à cabeça movimentos violentos, de ação contra o outro, de estiramento dos braços, em suma, de luta ou mesmo briga. Eu até pensava em um movimento de corpo todo em que a gente teria de visualmente render uma força contrária, jogando-a ao chão. É estúpido dizer isso, mesmo contar, mas é verdade.
Pensei em casa, dado que havia tempo – eu tinha a possibilidade de sugerir, mas não surgira ainda a oportunidade –, sendo que naqueles dias acabei comprando um livro inspirado em Laban. Nesse livro, havia umas figuras. Uma delas mostrava um sujeito fechado e aberto, de certa forma. Não que a imagem tenha me influenciado (comprei o livro depois de sugerir o movimento), mas na hora em que sugeri meu movimento a questão da energia era fundamental (eu queria algo que fechasse, resguardasse, a energia, e algo outro que a soltasse, de forma violenta ou não). O movimento foi esse que hoje chamo de Nascimento-Luta. Está explicado a seguir.
“Movimento nascimento-luta
Tenho muita dificuldade em relaxar. Talvez seja essa a maior dificuldade física genérica que eu tenho. Não relaxo no dia a dia, nunca consegui relaxar no karatê (cheguei à faixa roxa, por volta dos anos 90), não consigo relaxar quando escrevo, nem quando faço sexo, nem quando converso e creio que nem quando durmo.
Minha história a esse respeito é simples. Aos 6 anos, vi um golpe de Estado, do qual só me lembro dos sons das bombas e de algumas imagens. Sempre fui muito tímido. Um dia, fui ameaçado fisicamente e fiz karatê em seguida. Note-se que eu praticamente não tinha coordenação motora na época e que portanto os movimentos do karatê são quase os únicos que têm uma profunda identificação comigo. Com o karatê, fiquei uma pessoa violenta e traiçoeira e parei. Encaro os contatos como possíveis ameaças e sendo assim fico sempre na defensiva. Só muito recentemente (mesmo, tipo semanas) venho conseguindo encontrar uma forma de EU falar sem que dê margem a sensações de ameaça vindas das outras pessoas. Tentei me matar há dois meses porque estava convicto de que nunca iria ter um relacionamento normal com outras pessoas.
Na mesma época em que fiz karatê, fiz yoga, mas eu dormia nas aulas. Não conseguia estudar, e dormia na biblioteca.
Quando me sinto à vontade, tendo a dormitar ao lado da pessoa com que consigo relaxar, geralmente ouvindo música, e simplesmente destruir os movimentos que possam existir em mim. O ponto inicial do movimento é uma espécie de relaxamento primordial, como se fosse um nascimento. Por sua vez, considero que o relaxamento por si só não basta, ou seja, que é preciso forçar a situação de fechamento em si, como se fosse uma espécie de morte do impulso em si.
Mas, por características biográficas, sinto-me o tempo todo ameaçado.
O karatê e observar lutas fez-me começar a apreciar o aspecto técnico das lutas. Isso, somado a minha admiração com o caráter cirúrgico de certas cenas de ação de blackbusters (Cães de Aluguel, Colateral, etc.), e ao fato de ter acompanhado muitos treinamentos internos de karatê entre mestres (dos quais tirei documentos que ainda irei divulgar), assim como ao fato de ter criado uma espécie de ética própria (no sentido de que, qualquer que seja o ambiente de conflito, mesmo verbal, atuo de forma a dar “ippons” (golpes únicos e certeiros) para reduzir a duração e a intensidade do conflito, resolvendo-o), assim como somado ao fato de haver passado 10 anos convivendo com brigas familiares, toda noite, em que nunca se chegava a uma conclusão, fez com que eu passasse a admirar movimentos de extrema rapidez e violência cirúrgica sob o prisma estético. Pois o que NÃO ME FAZ apreciar lutas coreografadas ou lutas de Vale-Tudo é que em geral elas são feias e pouco eficientes (há exceções, como a da Ronda).
O movimento então surgiu da necessidade de relaxamento primordial, de se ser afetado por um motivo externo e de reagir a ele, e de cumprir o ato de fazer tudo em tempo reduzido ao limite do quase impossível. A saída do relaxamento é, em si, quase um ato de preservação que só conseguiria ter efeito em um só golpe certeiro e mortal. Mas, como não há luta, restou somente a saída excessivamente violenta e rápida e o relaxamento posterior do movimento.
Quando a Martin, vejo-o, assim como ao meu pai, ensimesmado, mas que pode sair facilmente e SEM MOTIVO do estado em que está e abordar violentamente as outras pessoas. Esse é o movimento.”
Desse movimento, em virtude de inseguranças, pois certas coisas passaram a me causar estranheza, especialmente o caráter violento do movimento, vislumbrei uma opção, que é o movimento súplica-contrição. Que está aqui:
“Movimento Súplica-Contrição
Quando participava de ensaios para Esperando Godot, pelo Garagem 21 (César Ribeiro), fui defrontado pela primeira vez com o Método Suzuki. Não pude apreender muito dele, na ocasião, mas reparei como me machucava, física e psicologicamente, um determinado movimento de alongamento/aquecimento que consistia em alongar a coluna, no chão, com o alongamento respectivo dos braços à frente, mantendo uma das pernas cruzadas e forçando a região próxima às virilhas. Eu tive muita dificuldade nesse movimento em particular – tanto que o orientador achava que eu estava brincando ao não conseguir abaixar o meu tronco em relação ao chão.
Por outro lado, como é possível perceber no primeiro movimento que eu, digamos, “bolei” (Movimento Nascimento-Luta em
http://teatro.rcontrera.com.br/2015/08/movimento-nascimento-luta.html), nutro uma profunda reverência, desconhecimento e mitologia sobre movimentos que reduzem a presença corporal ao mínimo e que, no limite, referenciam-se ao nascimento do ser humano ou mesmo dos animais. Nesse sentido, considero que pode existir uma relação entre a súplica, o movimento de estiramento acima citado, e a contrição (que, como o nome bem diz, atribui uma carga religiosa ou mística a algo que é dado, qual seja, a ausência de resistência em se estar no mundo ou ao se preparar para entrar nele). Em questão de referências, a contrição me leva mais à yoga, mas lembro-me que no karatê existia esse tipo de postura de paz, de ausência de reação, de nada – como diz o Bruce Lee, ou o Musashi, no Livro dos Cinco Anéis –, e que tudo isso, todas essas referências podem ter, e devem ter, realmente algo a ver com, ao menos, este movimento em especial.
No que diz respeito à peça “A Noite é Mãe do Dia”, de Lars Nóren, o movimento é minha leitura à relação de Martin, o pai bêbado, à vida em geral e à sua relação com os membros da família, juntos ou separadamente. Eu me conduzi a essa leitura por vários motivos, a maioria deles derivados de minha observação por anos, e da biografia, do meu pai, que se envolveu com a bebida em conjunção com efeitos de psicose maníaco-depressiva, e que não soube aparentemente lidar com os problemas derivados dos efeitos da doença e da bebida, assim como de seus atos, em nossa família. O meu pai era o filho caçula de uma família de chilenos de origem escocesa, sempre foi muito mimado por todos, casou com minha mãe, que conduzia a família com mão de ferro, e quando se perdeu tentou retornar a questões de sua juventude, como por exemplo uma antiga namorada, a primeira, que ele reencontrou quando estava em fase maníaca da doença. A leitura mais ampla de minha mãe de tudo o que iria acontecer – os 9 anos de sofrimento familiar – foi que ele sempre foi um sujeito mimado e que não soube dar valor àquilo que tinha. Não sei bem qual é minha posição a respeito, mas, analisando de longe e até de perto o comportamento de amigos afeitos à bebida e que deixam com que ela – e seus problemas, anteriores ou posteriores – afete suas histórias, noto que em geral o bêbado incorrigível é um ser sem esperança, quase morto enquanto ser com possibilidade de escolha. E nessa leitura encaixo o movimento que estou propondo.
Considero que, em linhas gerais, os seres humanos são seres que nascem com a intenção de escapar de uma condição (o pré-nascimento, que ocorre num clima geralmente de paz) e com uma relação sempre indefinida com respeito a forças maiores, no caso Deus, ou família, ou sociedade, ou mesmo tecnologia, ou mesmo o destino, caso queiramos sair de situações externas ou motivadas por forças exteriores a ele. Nesse sentido, o movimento visa colocar numa conjunção a situação de paz do pré-nascimento ou do descanso fora do mundo (como no sono, ou no descanso no amor, ou no repouso em Deus ou outra entidade que lhe cause reencontro) com a busca de algo fora dele com respeito ao que ele se considera ou inferior ou em situação de embate compreensivo (no sentido inglês do termo, comprehensive). Ao contrário assim do outro movimento proposto, este não é para ser conduzido com violência ou rapidez ou mesmo oposição ativa contra alguma coisa. Mas ao contrário, ele deve ser conduzido com a lentidão típica a cada um que se defronta com essa situação, de sair do conforto da contrição para se dirigir a uma força externa, com a qual tem problemas de lidar. O movimento em si deve ser feito, alternadamente, com as duas pernas, por alguns segundos apenas, e no caso da contrição não sei bem como resolver (se existe uma posição única ou preferencial).”
Podem se perguntar: mas como assim, levar tudo isso tão a sério, e meter-se a criar movimentos, nem tendo sido formado nisso? A questão é que após fazer o Nascimento-Luta, sobre o qual, aliás, eu tinha toda a convicção mas muitas dúvidas, Ulrika perguntou-me na frente de todos se poderia escrever sobre ele, e disse ainda que nunca havia visto algo assim. Isso, para quem luta contra o ego mas que também tenta impo-lo a si como ele realmente é, foi interessantíssimo, pois percebi, pela sensibilidade dela, que eu já começava a reconhecer, que algo que eu fazia, além de ter algum mérito também nesse quesito (corpo), era passível de se refletir a respeito. Isso deu-me um élan que antes não havia, e que não era tático, mas que eu sentia como sincero. Assim como foram sinceras as dúvidas a respeito (daí o outro movimento), e o surgimento de mais dois deles, um deles chamando-se Ouriço-Estrela, e que não é para se explicado aqui. Claro que esse acontecimento é avaliado por cada um de seu jeito especial, e que, como tudo que é novo, deve ser reflexivamente avaliado em relação com tudo o antes e o depois, sensível e formalmente, e que esse jogo de certa forma explica a história, a civilização, o ser humano e a sua vida e morte.
Neste momento da oficina, algo parecia estar se confundindo em meu interior, nas experiências e na relação com os atores, as pessoas, as almas, algo parecia estar escapando da relação espaço-tempo tradicional, pois, sendo bem realista, as coisas passaram a se tornar tão intensas que a impressão do tempo não era mais coetânea com o tempo real. Em suma, as coisas mal duravam e pareciam durar muito, a aula acabava mas permanecíamos lá esperando mais, havia coisas que aconteciam que eram tão fortes que parecia que não tínhamos mais como continuar e eram apenas 21h! (as aulas iam até as 22h). Nesse ponto concreto, então, em termos metodológicos, havia claramente a intenção de aproximar ainda mais a pessoa do personagem, pegando este de todos os lados, e aquela também. Um dia creio conseguir distinguir um momento do outro nessa barafunda de materiais, mas agora prefiro simplesmente elencar alguns textos resultantes desse momento do processo, simplesmente referindo-me a pontos em especial, de forma a contextualizá-los dentro e fora (na experiência interna e externa) em seus PONTOS MÍNIMOS. Esses textos vão embaixo.
Neste texto: seria necessário escrever o que fizemos saindo de casa até a oficina. Cheguei até a metade. Tentei ser exageradamente prolixo.
Texto
Abri os olhos. Olhei para o lado. Vi o celular. Peguei. Vi a hora, dormi algo mais. Acordei de novo. Levantei. Fui até a sala. Liguei o note. Olhei o note. Vi o face. Fui à cozinha. Esperei vendo o face. Fui até a cozinha. Peguei o leite. Conferi o copo. Pus. Pus granola. Tomei. Três goles. Vi os e-mails. Continuei. Fui à cozinha. Peguei um pão. Pus margarina. Comi. Vi o face. As horas passaram. Ri de um post. Fui ao banheiro. Tomei banho. Olhei as roupas. Peguei a mesma calça. Uma camiseta. Esperei msg da P. Não veio. Peguei o dinheiro. Fui ao mercado. Comprei algo. Falei com a filha. Voltei. Comi algo mais. Vi se havia esquecido algo. Saí. Falei com os porteiros. Peguei a rua. Segui em frente. Peguei a esquerda. Tomei um café. Falamos besteiras. Desci. Peguei o ônibus. Reparei numa garota de preto. Olhei. Ela desceu. Continuei. Sentei. Depois mudei. Saí no Butantã. Peguei o dinheiro. Quis pegar passe, não deu. Fiquei na fila 25 minutos (ilegível). Comprei os tíquets. Olhei feio. O metrô foi até a Paulista.
Fim do texto
Percebo hoje neste exercício a tentativa foi a de traduzirmos nossa presença no curso no contexto de nosso dia a dia, em ações. Ou seja, de nos percebermos em relação ao curso e aos colegas dele. E de fazermos isso PARA NÓS, independentemente deles. E, ao dividirmos as ações em movimentos diminutos, percebermos que são esses movimentos que fazem de nós a nós mesmos.
Neste texto: seria necessário mostrar a cena (que escolhi com o Pedro, meu partner, e que comento daqui a pouco) em seus traços mínimos, por aquilo que ela passava em frases curtíssimas, como se estivesse sendo olhada de fora.
Texto
Homem mais velho sentado.
Jovem sentado ao lado.
Homem cai de sono.
Fala. Lento. Suave. Desanimado
Jovem responde.
Certa empatia.
Certa simpatia.
Forçada.
Homem mal ouve.
E de vez em quando responde.
Jovem responde.
Tempo.
Lamento. O Homem lamenta.
O jovem tenta consolar. Distância. Distância.
Que aumenta. Que aumenta.
Que amaina. A distância.
Homem mais velho reclama.
Está velho. Cansado.
Não gostam dele. Nem lamenta.
Consolo? O Jovem quase sem se mexer.
Mão ao ombro. Consolo. Consolação/
Prêmio de Consolação/
A queda do homem no tempo.
Uma vida vazia. Ninguém liga.
Jovem lamenta.
Homem chora. Desconsolo.
Jovem: não era verdade.
Um problema.
Homem se pergunta.
Não importa.
Para nada não importa.

Fim do texto
Percebo, agora, que neste texto eu faço uma análise do que vejo, falando de forma simples e rasteira, a partir de fora, daquilo que o meu partner e eu fazemos ou pretendemos fazer em cena. Essa é uma forma de nos afastarmos de nós e de nos olharmos em contexto, na cena que bolamos, até mesmo para fazer uma leitura crítica disso.
Neste texto: seria necessário comentar o personagem (Martin) em seus termos, mostrando seu dia a dia, na medida exata daquilo que ele era, refiro-me ao personagem. Eu preferi fazer um personagem Martin/Guilherme, meu pai, comentando seu dia a dia, como eu o via naquele momento, na medida de seu desenvolvimento (des-envolvimento) com o mundo, ou seja, sua fuga, que agora avaliava.
Texto
Martin/Guilherme
(Guilherme era o nome do meu pai)
Martin/Guilherme não acorda.
Não se veste.
Não chega.
Não trabalha.

Martin/Guilherme não almoça.
Não lembra.
Não fala.
Não fala.
Ouve palavras que quer.
Ouve palavras que quer.
Ouve palavras que quer.

Não volta.
Não fala.
Não vê.
Não está.

Toma uísque.
Fuma cachimbo.
Dorme.

Não ouve.
Não fala.
Não está com a esposa na cama.
Não acorda.

Fim do texto
Percebo, agora, que neste texto eu simplesmente faço o mesmo exercício de dias atrás, qual seja, o de pegar passo a passo os gestos e ações de uma pessoa – agora o personagem – como se ela fosse nós mesmos. Neste exercício, em particular, eu identifiquei Martin com meu pai e, assumindo a leitura crítica de que ele a maior parte do tempo não estava (como ele queria), questionando sua própria existência no âmbito da realidade. Neste caso, ele parece só estar quando fuma cachimbo e faz algo que quer. Ou seja, por essa leitura, ele a maior parte do tempo, ou todo o tempo, não fazia o que queria.
Neste texto: seria necessário mostrar o personagem/pessoa em seu último dia, ou últimos instante, absolutamente distanciado de tudo, buscando seu momento final.
Texto
Campo, bois, árvores, sem esposa, sem filhos, cadeira balanço, cachimbo, mull of kintyre, amigos, saudações, uísque, o drink.
Olhos no horizonte, morte próxima, céu azul, sem memória, sem culpa, sem dor, sem vida, só o álcool e eu, uma bunda que passa, outra bunda que passa, alguma lembrança vã, o pênis duro, cansaço, morte, amor. Love, saudações.
ainda não. era para depois.
sede, amor, sexo suave, ela comigo, a garrafa, a dor, uma dor que não sei, outra dor, a garrafa, o paladar, o gosto, um gosto acre, ocre. tequila, uísque, cerveja, a dor o amor
de novo a cadeira balanço. olhar fixo. horizonte o copo de bar. a bebida nobre. beber é para os fortes. eu amo. eu amo. tudo bem
ampliação de horizonte, sensações inesgotáveis, o sonho de ser o que se é.

Fim do texto
Percebo que neste texto, por outro lado, eu tenho uma leitura mais sensível e menos crítica do mesmo distanciamento do personagem, Martin, que eu estava trabalhando para apresenta-lo no último dia da oficina. Neste caso, contudo, meu personagem não era bem Martin, mas meu pai, com trechos absolutamente idiossincráticos, no momento em que bebia e tentava saborear o que vivia e sentia, que era pouco e que parecia só remeter a um deixem-me em paz. Ou seja, ao mundo de um bêbado que quer ser deixado sozinho, em sua própria companhia, sabendo-se inalcançável e indevassável, sem culpa, fazendo o que lhe dava na telha.
Já neste texto: seria necessário mostrar uma “cena” em que meu pai estava presente diante de todos, mas distante de nós, ensimesmado, como nós o olhávamos, ou como eu lembrava dele. Pensando em como ele poderia se sentir naquele momento de sossego. Foi difícil imaginar, dado que eu praticamente não me lembro mais dele, e isso (essa constatação da ausência de lembrança) veio também no último ensaio da cena que viemos a montar (no caso, da minha com o Pedro).
Texto
Eles me deixavam só, afinal. Não tinha que ser nada com respeito a ninguém. Simplesmente me deixava ficar. Pegava meu cachimbo, media como estava o fogo, e fumava. Pegava um uísque da estante. Colocava num pequeno copo/ dose apropriado. Bebia. Numa poltrona, isolado. Os garotos, longe. Eu sentado. Calado. Podia pegar um jornal. Não um livro. Um jornal. Virar as páginas. Bebericar. Reacender a pipa. Fumar, engolir. Não importava a asma. Ela me servia ou olhava de longe. De preferência ninguém perto. Como es estivesse num palco vazio. Pensando em falar em inglês. Pegando mais bebida. Ficar lá. Ficar sentado. Por todo o tempo. Até o fim.
Fim do texto
Já neste outro texto, faço uma leitura mais intermediária da mesma intenção de perceber o personagem/pessoa (Martin/pai) enquanto, isolado, tentava ficar consigo mesmo – e eu o olhava, tentando entende-lo. Nada menos que o texto anterior sob um ponto de vista menos subjetivo. Também uma breve leitura de passos de sua vida – a tentativa de superar a asma com natação (que não é abordada), a sua queda para o inglês, e a sua busca de uma certa tranquilidade a partir da leitura e do entendimento do mundo a partir dela.
Nestes textos, então, foi feita a reconstrução, em ações, daquilo que consistíamos nós, em relação à oficina, e de nossa trajetória até lá (que no limite poderia chegar à constatação de que ela não era importante para nós). Por outro lado, na medida em que nos concentrávamos também no personagem e em vê-lo isolado, a partir de fora, ou a partir de dentro, aprofundávamos nossa relação com ele, meio que reconstruindo-o, ou como diz a Lulu Pavarin, minha ex-professora, emburacando-o. Não nego que esse tipo de reconstrução ajudou-me na caracterização do personagem em cena, embora tenha também me colocado diversas dúvidas, pois até o fim eu nunca soube se devia apostar numa leitura histriônica e patética nas suas contradições e falsidades, ou se devia ao contrário acreditar na SUA (do personagem) emoção, assim como na singeleza de sua relação com David, o personagem do Pedro, que navegava no palco, como eu irei explicar agora. A solução iria ficar mista, e ainda me causa certa estranheza.
Antes de entrar na cena do Pedro comigo, é preciso notar que nessa mesma parte da oficina a Ulrika começava a nos pedir para falarmos como estávamos, em falas limitadas no tempo, no começo e no fim da aula. Nesse sentido, estabelecíamos uma melhor relação conosco, com os colegas e deles conosco. Isso foi importante como ferramenta de nos relacionarmos com o entorno e de esfriarmos a relação com nossa emoção, sempre nos colocando de fora, como observadores de nós mesmos e dos outros.
O Pedro Guillaumon é doutorando em Física. Ainda não sei seu comprometimento com o teatro, ou com a atuação de forma geral, mas sempre percebi sua integridade ao se colocar na oficina. A gente sempre percebe que ele de fato está lá, sem defesas, jogando-se nos exercícios, nas escritas e nas leituras. Vejo nele uma certa singeleza e ingenuidade na abordagem do mundo, embora, claro, isso não seja algo de forma alguma negativo, e afinal de contas quem pode estar sendo ingênuo sou eu, mesmo ao pensar ou dizer isso. O Pedro sempre teve uma ligação interessante comigo na oficina, me ouvindo atentamente – ele sabe ouvir – quando eu parecia ter algo importante ou mesmo singelamente relevante a dizer. Não me lembro direito como nos escolhemos, um ao outro, para fazer a cena, mas lembro que chegamos facilmente ao momento dela, que está das páginas 160 a 162 (a professora disse que deveria ser de no máximo 4 páginas do livro). Nesse momento, Martin e David conversam, o primeiro lamentando sua distância em relação a todos, e o segundo esboçando, apenas esboçando, um certo carinho que nutriria pelo pai, que se emociona, mas que logo a seguir se torna aquele sujeito apático de sempre.
Antes de mais nada, minhas preferências, até pelo meu histórico (breve) no teatro, vão na direção de lidar com problemas de incomunicação, com linguagem minimalista, com abordagens histriônicas, como as de clowns ou palhaços, e de insistir em contradições, paradoxos ou mesmo situações em que o acaso acontece e mantém um sentido ou muitos sentidos em suspenso. O Pedro, por outro lado, nunca me contou sua abordagem do universo teatral, sua experiência, seus espetáculos e suas leituras. Ele, ao contrário, sempre se mostrou aberto àquilo que eu dizia, até pelo fato de que eu não faço questão de ter razão, só de que a gente use uma abordagem gentil e razoável ao tomar nossas posições quanto ao trabalho em dupla ou coletivo. Não gosto de imposições de qualquer tipo, a não ser que elas sejam completa e exaustivamente justificadas ou explicadas, sem o caráter portanto de imposição pura e simples.
Nos exercícios feitos para criar e apresentar a cena, em primeiro lugar fizemos uma leitura conosco e, optando por uma abordagem mais suave e que contemplava a singeleza do amor entre os seres, Martin e David, apresentamos uma cena com três cadeiras, uma para o texto, que não havíamos ainda decorado, praticamente sussurrada, com as pessoas bastante próximas e com uma abordagem intimista do assunto. Na hora dessa primeira apresentação, eu fiz questão de lembrar do meu pai, de rememorar seu sofrimento e de tentar jogar algo dessa energia na frente das outras pessoas. Uma vez que fiz isso, esse esforço me esgotou, realmente. Eu estava meio que apelando, também, na medida em que não queria desistir da empreitada, de forma alguma. E não sabia ainda muito bem por quê.
Farei algumas observações sobre a apresentação, que dividi na hora com o Pedro, como fizemos depois, sempre, na medida em que ele se interessava e eu também, e seguindo a orientação de não julgarmos na hora de apresentarmos nossas observações, e de não considerarmos nada de antemão adequado ou inadequado, assim como de não nos magoarmos com as observações de cada um, que, claro, deveriam, de praxe, ser polidas. O Pedro fez um registro realista na apresentação, tocando meu ombro direito com sua mão esquerda, aproximando-se na hora do interesse pelo pai, qual seja, eu. Eu preferi assumir uma postura o mais relaxada possível, derrotista, realista, tentando passar a energia de um bêbado que se sabe morto de antemão. A apresentação nos agradou, de forma geral, e assumiu um ar mais tranquilo do que o texto aparentemente pedia, mais melancólico e até lacônico, tentando os dois (o Pedro e eu) atribuirmos peso ao momento em que os dois personagens meio que tocam a alma um do outro. Nesse ponto, creio que a cena tenha se remetido, no meu caso, a cenas que eu próprio criei e em que eu tento mostrar que, após um período de relacionamento entre duas pessoas, normalmente é apenas a dor que sobrevive, embalada numa espécie de bolha de amor ou no mínimo de carinho. Mas isso eu não expressei ao Pedro na ocasião. Ulrika parece haver gostado do resultado.
Nos exercícios e apresentações posteriores, Ulrika sugeriu que saíssemos das cadeiras, até porque as assumimos como opção na medida em que ainda não dominávamos o texto da peça, e que criássemos algo no chão, como se ambos, ele e eu, não conseguíssemos nos comunicar, ou mesmo como se não estivéssemos numa mesma dimensão ou registro expressivo. Essa foi a sugestão dela, e eu acrescentei que queria usar algo do registro grotesco, e ela topou, abordando que poderia ser algo meio beckettiano, pelo que me lembro.
É curioso, porque se por um lado não me lembro de uma apresentação que eu devo ter apresentado em sequência, lembro-me muito bem de uma apresentação do Pedro, que simplesmente meio que navegou no palco, deitado, com as pernas juntas (detalhe anotado por uma atriz ou um ator do grupo), rosto fechado, bastante preso a uma espécie de busca absolutamente particular, e em que, ao que parece, algum texto era dito ou ele mesmo o dizia (lembro-me agora de que ele o dizia, tanto que o carregava consigo). Essa apresentação do partner Pedro me surpreendeu, e passou-me diversas energias interessantes e difíceis de lidar, que não sei se vale a pena comentar aqui. Sei apenas que foi uma criação absolutamente singular do Pedro, e que a Ulrika também gostou bastante. Eu me deixei cativar pela disposição dele em atribuir densidade a tudo aquilo, e como consequência aquilo acabou entrando em nossa cena e criando a ambientação (ou parte dela) de toda a cena. Comentei isso com ele, sem, entretanto, dar excessiva ênfase a algum tipo de formato pré-determinado que deveríamos seguir. O Pedro parece haver gostado bastante do resultado e das respostas dos colegas e minha, assim como da da Ulrika. Passamos a trabalhar assim, dessa forma.
No meu caso, meu personagem eu tentei criar com base numa figura prévia de um bêbado jogado no chão, com roupas em andrajos, que respondia ao filho, David, ensimesmado, sem muito contato com o mundo externo (refiro-me a Martin, ou seja, a mim), e com uma relação agressiva consigo mesmo. Tanto que o personagem se jogava no chão meio que desprezando o efeito dos golpes do corpo, e mesmo na cabeça (eu sei cair). Eu queria de fato criar uma espécie de personagem verdadeiramente estropiado, moral e fisicamente, que responderia ao filho na medida de sua própria (de Martin) descrença em relação ao mundo, a si mesmo, à família e aos seus membros, assim como ao futuro, que para ele praticamente não existia (não deveria existir). Nesse sentido, eu ficava entre deitado e jogado no chão, caindo para um lado ou para o outro, ou mesmo para a frente e para trás). Não havia uma inspiração específica para isso, mas eu me lembrava de todos os bêbados destruídos que conheci, e que tinham tudo de mendigos, apesar de não se reduzirem a eles. Meu pai não era bem assim, pois manteve até o fim um certo tipo de desprezo pelo normal, e assumia assim um caráter mais cult do que o normal. Mas o que era, afinal? Isso mesmo. Por outro lado, os movimentos de rapidez e súplica também remetiam a uma verdade que eu parecia não ver na época. Pois, tal qual na peça, identifico uma identificação amorosa entre o filho jogado para o lado e o pai destruído que realmente teve momentos reais em nosso caso, de minha família. Por isso, e talvez só por isso, meus movimentos sugeridos não possuem uma idiossincrasia chapada, mas mostram-se reais e representativos de uma luta ocorrida na alma daquele tipo de ser. Pois até o fim eu fiquei dividido quanto ao caráter do movimento de aproximação em relação a David, se deveria ser rápido ou lento, como uma súplica. Esse era o meu Martin, sobre o qual fiquei dividido até o fim, até a apresentação, e até hoje permaneço assim, dividido.
Houve então o pedido, em outra aula, para criação de um texto, para realização de um exercício em dupla e para a realização e apresentação de uma cena com a pessoa dessa dupla. A pessoa que me escolheu e a cuja escolha eu assenti foi a Suzana Rebelo, com quem eu tinha feito parte de uma cena anteriormente. O texto vai a seguir e o relato, em seguida a ele.
Texto
Porque eu quero viver. Sem amor eu morro. E sem seu amor morro muito mais.
Porque quero ver tua vida, viver tua vida, e sentir nossa morte. Aos poucos. Sem dor e com dor.

A que ponto você deixou as coisas irem, R. A que ponto. E nunca saberei por quê.
P., estou aqui e te sinto.
Porque quero te ajudar a viver e a morrer. Você que já morreu tanto.
Fim do texto
Sobre essa experiência, eu havia feito um texto à Suzana, que coloco aqui em versão pública, pois, embora na versão privada, eu não fale a meu ver muito de coisas particulares, dela e minhas, prefiro manter uma discrição absoluta nesses detalhes. O relato vai a seguir.
“A SUZANA
Desde que a Ulrika explicou o exercício, eu sabia que iria ser terrível.
Eu nunca me senti amado. Não que eu não tenha sido amado. Mas eu nunca me senti amado, nem senti que eu tinha motivos para querê-lo. Não importa o porquê disso, que é muito pessoal e que no fundo se restringe à minha pessoa, minha história e minhas expectativas comigo e com o mundo, assim como com meus desejos. Daí que interpretar COMO EU DIRIA A ALGUÉM para me amar era quase um contrassenso. Até porque passei nos últimos dois anos pelo mais profundo e dramático processo a respeito, quase me matando fisicamente por causa disso. No caso, eu disse isso à R por dois anos, joguei todas minhas fichas nisso, e consegui X noites de sexo, mais uma amizade que nem sei se tem esse nome. Não nos falamos mais desde nossa última discussão por whatsapp. A presença dela, até por email, hoje me incomoda. Mas gosto dela porque ela me ajudou demais e porque é uma boa pessoa. Mas não sei o que restou de tudo. Além disso, nunca me senti amado pela minha mãe – que realmente me amou e ama –, nem pelos irmãos, muito menos pelo meu pai. Por outro lado, decidi há pouco tempo que eu iria jogar todos os meus esforços em amar as pessoas e encontrar as pessoas que eu quero amar enquanto formação de família. Sou ultraconservador e ultrarrevolucionário (em termos políticos e de costumes), e não creio estar fazendo nada errado, mas às vezes é bastante perigoso para mim e para as outras pessoas.
No processo, digo o meu processo, durante o exercício, fiquei olhando, do outro lado da sala, para o espelho. Olhava em diagonal de forma a não me ver. Não olhava onde alguém estava, mas para mim. Chorava continuamente, as lágrimas caíam e eu não conseguia parar. Parecia como se eu não pudesse realmente conseguir fazer o exercício. O tempo passava e eu tinha que escrever as frases. Eu não havia entendido direito, ao que parece, porque eu queria encenar-me falando as palavras que iriam sair. Mas peguei o papel com calma, e rabisquei algumas palavras, que transcrevo logo embaixo. As palavras saíram como que para alguém em geral, e depois para a R e depois para a P. Saíram em três momentos diferentes. Nos dois momentos últimos, eu vacilei bastante, e as palavras para a P saíram com bastante dificuldade. As para a R, não. Estavam lá, há bastante tempo. E eu já havia dito essas palavras a ela, pessoalmente e por email, ou whatsapp ou inbox, nem me lembro (está tudo guardado). Foram poucas palavras, no total, e não muito bem escritas. Depois soube com outras pessoas que com elas acontecera basicamente o mesmo. Durante toda essa primeira parte do processo, eu tive que enxugar as lágrimas algumas vezes, que caíam, mas que não me faziam chorar, propriamente falando.
Daí o novo exercício era derivado de um anterior, em que tentávamos impedir que a outra pessoa continuasse andando, afastando-se de nós. Só que da outra vez o foco era apenas físico, para forçar o movimento. Desta vez, tinha a ver com o texto, com o texto que cada um acabara de fazer. Olhei ao meu lado, já que eu estava de pé, e vi uma pessoa (do meu lado esquerdo) com que não me dava muito bem (mas não que antipatizasse, simplesmente a energia era diferente). De repente, a Suzana chegou e me escolheu. Achei legal, isso. Eu já havia feito uma cena com ela, digo, um esboço, e gostara da energia forte dela, do sorriso e do caráter físico da cena (incomoda-me o toque, mas de alguma forma eu confiara na hora – refiro-me à cena que fizera com ela e mais duas pessoas). Mas ao mesmo tempo, desta vez, eu me incomodara um pouco, porque ela é bonita, forte e densa. Sempre me sinto estranhado quando faço exercícios em que é preciso um envolvimento físico no sentido de tocar, por exemplo, no quadril de alguém (que era este caso), ou de impedir que a pessoa faça algum movimento em particular (neste caso, também). Eu avaliei o corpo dela, imaginando como seria, se seria fácil controlar o seu corpo e realizar o exercício.
Suzana, eu sinto que preciso falar o que vem a seguir, mas peço que não leve a mal.
Por outro lado, eu sempre me estranho quando preciso fazer exercícios físicos com alguém porque me envolvo de forma excessiva. Lembro-me de quando fiz um exercício de relaxamento nas costas de uma colega numa aula de palhaço. Era uma garota pequena e forte, e fiquei assombrado com o exercício. Na hora, me excitei demais, mas não transpareci nem isso afetou nada. Simplesmente era estranho. Lembro também quando fiz um exercício de pegar nas costas de uma colega numa oficina com o Diogo Granato. Por algum motivo, aquela moça me atraía demais, e ao pegar o corpo dela (no caso, apenas as costas, muito fortes, mais até do que a da outra moça, anos antes) eu vacilei realmente, mas a maior estranheza foi que eu não mais me excitara, ao contrário, eu me abandonara ao corpo dela, ao gesto de pegar suas costas com minhas mãos, e ao contato, em si, ou seja, realmente ao ato de invadir o corpo dessa forma bastante sutil embora agressiva (era para massagear as costas com força).
Neste caso, com a Suzana, foi estranho porque eu não via muitas dificuldades, ela tem mais ou menos minha altura (ao contrário da Jo, que eu peguei antes, no exercício anterior), e porque eu não me envolvo mais (daquela primeira forma). Mas a ênfase do exercício, focado no amor, iria me confundir muito, ao que parecia. E foi o que aconteceu.
1 No começo, ela pegou-me nos quadris. Eu avançava com força e calmamente, após havermo-nos preparado ao pisar bem o chão. Contudo, eu não sentia muita dificuldade, por um lado, mas não conseguia jogar para fora aquelas palavras, essas que havíamos escrito antes. Havia um leve constrangimento de me expor, ou uma má compreensão do que acontecia, do exercício, não sei, sei apenas que parecia falso eu dizer aquilo. Houve um momento, claro, que eu disse as palavras, e elas saíram sem muita dificuldade, mas também sem muita alma. Eu também sentia que ela parecia experimentar alguma dificuldade em me segurar, e na hora de sair, ou seja, de escapar, eu não consegui um resultado muito bom. Não me sentia liberto de nada, em suma.
Tô confuso. Não consigo lembrar direito qual era o movimento a seguir. Sei apenas que ela estava me segurando, num determinado momento, e que eu escapava dela, e que ouvi as palavras dela, dizendo mais ou menos aquilo que normalmente dizemos quando estamos apaixonados, que fazemos tudo o que a outra pessoa quiser, que queremos que ela fique, etc. Mas algo me estranhava em tudo, porque ao mesmo tempo em que reparava que as frases eram bastante clichê, eu sentia algo de sincero naquilo, que porém foi destruído quando ela me disse que bolara aquilo ... Achei estranho quando ela me disse isso. Eu sentira uma sinceridade que pelo jeito me enganara ou que dizia respeito a algo que talvez ela mesma não estivesse reparando, dado que nos últimos meses tenho progredido tanto, mas tanto, em questão de empatia e em perceber a outra pessoa que sinceramente não consegui imaginar que eu estivesse realmente me enganando. Mas ela, a Suzana, sempre me pareceu uma pessoa muito direta e não devia estar brincando comigo, até porque ela disse aquilo en passant, como se fosse aquilo mesmo e nem tivesse tanta importância. Foi quando comecei a ver que ela se revelava, de alguma forma, como pessoa.
Mas daí eu me lembro então que trocamos de posição e que eu agora a segurava. (Confundi tudo, realmente. Pois agora eu lembro claramente que eu primeiro te segurei). Volto a 1.
Quando eu a peguei, notei que meus dedos ficavam tesos depois do exercício, e que eu a segurava bastante forte, e que ela notava. Não estava emocionalmente envolvido nessa parte do exercício. O corpo dela não me causava estranheza ou excitação. Eu simplesmente fazia o exercício, e notava que ela também, mas estávamos meio de fora, ambos os dois, pelo que eu notava.
Quando ela me segurou, notei como ela sentia dificuldade, porém. Eu sou muito magro, mas bastante duro, com músculos coesos, embora eu tenha bastante dificuldade de movimentos ainda, apesar dos 5 anos de karatê na década de 90. E sou muito forte, mesmo dadas minhas limitações. Devo ser como era o Getty nos tempos áureos (não muita força, mas foco). Mas então (voltei a escrever, dias depois), ela me segurava e eu sentia como ela parecia penar. Talvez ela estranhasse, não sei. Talvez ela estranhasse a dureza e o foco para a frente. Eu sentia alguma dificuldade, mas confesso que nem tanta. Claro, ela é mulher. Mas havia algo mais. Eu estava focado, e como sempre relativamente fraco por causa da má alimentação.
A professora disse-nos para falar e mesmo gritar por que não quereríamos amar a pessoa que implora nos amar (“representada” pelo nosso parceiro que nos segurava, e que deveria fazer QUALQUER COISA para que ficássemos). Daí lembrei-me da R, que agora como que (muito sutilmente, quase de forma invisível, e mesmo quase inexistente, pois eu creio conhece-la bastante bem) quer que eu continue falando com ela (por facebook, por twitter, sei lá, pessoalmente é que não). Ela tem seus motivos hard para isso, é bom entender. ... Então, surgiu uma frase sozinha, que era “eu não aguento mais”, que passou a assumir um volume estranho, porque não parecia combinar com o local em que estávamos (a sala de ensaios), e em que eu sinceramente não me sentia lá. Era como se eu estivesse falando para alguém, embora esse alguém não aparecesse. Eu me lembro que diversas vezes, durante meu relacionamento com a R, eu dizia isso para mim mesmo, que não aguentava mais. Eu lembro que quando a P me salvou dela eu dizia a mesma coisa para mim, e até cheguei a gritar isso. Mas neste caso havia uma corporificação que me destruía, porque jamais acontecera. Eu sempre tentara manter quem parecia não querer mais me amar, mas sem vitimismo nenhum nisso, pois era como se eu realmente não tivesse, minha vida inteira, “feito por merecer” ser amado. Talvez eu nem tivesse amado, e não poderia dizer mais nada a respeito. Desta vez, ao menos desta vez, numa sala de ensaios, com você me pegando pelos quadris, você dizia que queria que eu ficasse. E eu nunca ouvira isso, e ao mesmo tempo era real, porque até certo ponto (um ponto muito micho) ... Mas eu não aguentava mais, e esse aguentar era real, mas ao mesmo tempo não aceitava corporificação, era um aguentar que estava para além dos motivos concretos. Era algo que estava para além da relação que não houvera, ou que houvera de um jeito tal que hoje me constrange absolutamente. Estão desaparecendo as imagens, as dores, mesmo as lembranças, já parece praticamente não restar nada, ou o que resta é algo tão irrelevante que não me diz praticamente respeito. ... Os gritos eram dantescos, dei uns três deles, e fui muito longe na energia jogada na hora.
Daí a gente parou e foi orientado para o outro exercício. Neste, a gente teria que dizer, um ao outro, algumas daquelas frases. Ocorre que você me disse que havia falado aquilo... E eu te perguntei quem seria importante para vc. E vc me disse que ... Aí trocamos essas frases. Eu me joguei de novo completamente, e quase senti a presença das pessoas envolvidas, a R e a P. Olhei vc como sempre faço fixamente nos olhos, como que entrando na pessoa, e chorei do meu jeito, sem perder a compostura necessária ao exercício. Você fez o mesmo. Eu notei que nosso choro foi muito contido e que para você parecia ser algo forte, bastante. Notei também que nas frases que você citou você terminou com ..., e que você gostaria de fazer, na verdade, faria tudo por ... Notei que você relutou muito ao falar. Não sei se estou certo disso.
Daí veio o exercício que a gente teria de encenar. Você sugeriu com as mãos, e eu disse à Ulrika que foi ideia sua, e vc gentilmente disse quem havia te sugerido isso, o Edgar Castro. Não sei quem é. Sua relutância em se admitir como parte que sugere (claro que formalmente a ideia teria sido dele) é algo interessante. Ao menos para mim.
Mas ocorreu algo mais que me constrangeu bastante, mas que não disse nem expressei. Você começou a falar sobre sua peregrinação a ... E contou como foi. Não sei como o tema surgiu, mas notei que você queria me falar isso. Não sei também por quê. Era a questão de ir em busca de? Não sei. Mas notei – desculpe-me falar – que vc dizia isso para mim, ou seja, que por alguma razão, naquela bagunça de sentimentos envolvidos, você queria me dizer isso. Esse detalhe, que poderia passar batido para qualquer um, depois assumiu um ar estranho e até um significado, como irei te contar.
Bom, daí fizemos a cena das mãos. Não fizemos ensaio, pelo que me lembro, pelo menos na vibe que a gente pretendia jogar em cena, e nos jogamos com absoluta integridade. Deixa te dizer o que eu fazia quando me jogava na cena. Em detalhes, quanto à entrega nesse tipo de relação – com as mãos, com o toque, com o diálogo sem palavras, e mesmo com o fato de que (você notou bem) parecia que eu não estava te vendo e enxergando.
Tenho um problema absurdo com o toque. Não vem ao caso por quê, é uma história longa que não vale a pena contar, pelo menos com este objetivo. Vem ao caso porém que esse problema com o toque reflete-se em tudo o mais, inclusive no sexo (em outro registro, claro), na questão do abraço (que eu tenho dificuldade imensa de sentir, na verdade acho que não consigo sentir os abraços, ou que nunca senti um), na questão de como as coisas começam (fui casado e digamos que convencido de algo por um simples selinho, passei boa parte da vida frequentando puteiros e tratando o corpo como objeto (principalmente o meu), e nunca me senti paquerando) e de como tudo se desenrola. A sutileza do toque (mesmo quando não é físico, ou seja, no olhar, etc.) me é absolutamente relevante na forma como venho lidando comigo enquanto ator e como dirijo os atores e atrizes de meu grupo. Em linhas gerais, sou 8 ou 80, com uma dificuldade absurda no toque mais suave e uma tosquidão absurda no toque mais escrachado.
No nosso ensaio, nesse específico, notei que vc assumia movimentos de certa forma padronizados, tipo colocar a mão à disposição. Eu decidi ir seguindo absurdamente minha própria sensibilidade, sem privilegiar a questão do “contato” (não físico, mas de comunicação), nem mesmo a busca dele, ou mesmo a comunicação na ausência dela. Mas notei que vc não ia nessa direção. Resolvi não me importar com isso. Por outro lado, como sempre faço quando tento me relacionar (você já sabe algo de minhas dificuldades), mantenho uma impaciência absurda e uma entrega (ou tentativa de) que também assume ares quase absurdos. Só para te dizer um absurdo, se a pessoa faz que quer ver meu ..., eu o entrego (quando existe, claro, uma relação nos moldes que eu imagino) e lhe digo minha ... e esqueço. A pessoa geralmente reluta e se assusta. Claro, é absurdo. Mas foi algo consciente que passei a assumir recentemente e que pode me levar a situações inviáveis, como é certo. Mas de que ainda não me arrependi (acho que vou, mas sei lá). Isso significa que sou idiota? Você pode achar que sim, mas o fato é que sou tão desconfiado que um criminoso talvez perdesse para mim. Compreendeu? Foi para me provocar e provocar na vida que assumi essa postura. Mas voltemos ao “meu absurdo” da entrega na cena com as mãos.
Na cena, como que eu reproduzi ao vivo (e principiei a fazer isso no ensaio que fizemos) meu comportamento diante de uma conversa normal (que eu faço, porque antes eu não fazia) com alguém em quem digamos eu esteja interessado. Não posso claro reproduzir como eu fazia com minha ex-esposa (fui casado por 10 anos e ela pediu separação), nem como fazia com a R (porque com esta eu não tive formalmente nada, nem ficante fui, pode acreditar, eu sei que é estranho, apesar da profundidade da entrega, pelo menos de minha parte, e das anuências, da parte dela), nem como faço com .... Reproduzi algo que em verdade não existe. Reproduzi como se eu estivesse diante de alguém, e minha vontade do simples toque, e a vontade do respeito mútuo, pois toque é sempre algo fundamental. No caso, eu sempre meio que permaneço insatisfeito com a real entrega (não é factual, é mais espiritual) da pessoa durante a conversa. Pois enchemos de tanta bobagem todas nossas conversas, na medida em que não respeitamos o que o outro claramente diz estar sentindo... Nesse sentido, claro, não pude deixar de notar sua (de vc, Suzana) timidez, na medida em que se expunha por meio das mãos de forma muito formal, correndo o risco de não falar nada. Pois A MIM simplesmente uma mão exposta não parece querer dizer nada, praticamente, e por outro lado a singeleza de não reparar ou de reparar melhor do que eu na sutileza do movimento é algo efetivamente transformador. Eu não me lembro direito dos movimentos na cena, claro; só lembro que a gente se tocou, contrariamente àquilo que a gente, digamos, havia combinado, e que começamos a nos tocar de forma a sentirmos mais como nós somos. E num determinado momento, na medida exata em que eu não estava atuando, mas me abandonando à situação, eu comecei a reagir negativamente ao seu toque, como se ele fosse forte demais, e eu assim o sinto, pois para mim as coisas não são tão áridas, embora, claro, em determinados momentos tenham até mesmo de ser. Você reagiu de uma forma tal que no fundo pareceu me surpreender na hora. Mas sabendo que estávamos no palco, eu simplesmente deixei tudo ir. Você aos poucos se fechou, ou imediatamente não me lembro muito bem, e eu fiquei então a ver navios, sabendo que queria o toque mas com mais suavidade, não aquele toque, pelo menos naquele momento, daquele jeito. No final, eu meio que dei uma zoada, mas te confesso que um pouco sem jeito, apesar de eu estar sorrindo, me colocando diante de você, com as mãos postas, esperando um novo contato, que não veio.
Eu não me meteria a fazer este texto se não tivesse reparado em duas coisas, uma das quais me chocou um pouco, embora a ela eu tenha reagido de forma espontânea, sem problemas: o fato de você, como quase sempre, aliás, ter escapado para trás da turma, e de não ter mais olhado para mim por bom tempo, só olhando mesmo na hora em que falamos algo da cena. Esse seu afastamento me chocou em parte porque você estava, a meu ver, muito inteira na cena, e porque eu notei, na hora ou depois, não sei bem como, que algo de você mesma, algo importante, estava efetivamente lá. Foi como se eu sentisse que você levou no pessoal algo que era um desencontro em cena, e isso ao mesmo tempo que me alegra, pois no meu método eu sempre quero descobrir com quem efetivamente estou lidando, também me confunde, pois não quero magoar e por outro lado não faço questão de agradar. Foi estranho, e no final, quando entramos no elevador (e até um pouco antes), algo acabou me acabrunhando – embora você tenha percebido que eu mantenho tudo como antes e não expresso absolutamente nada – aliás, a ausência de expressão me fascina, na verdade. Daí que pensei que valeria a pena eu te comentar estas linhas, só para vc saber.
Obrigado, Suzana, pela experiência, e pela entrega. Saiba que foi uma experiência bastante marcante para mim, e que levarei grandes memórias dela.”
Naquela mesma noite, ao ter combinado com a Naty fazer o exercício do dia seguinte, conversamos, ela e eu, antes de pegar o metrô, e ela admitiu estar passando por uma fase momentânea muito forte, relativa a uma pessoa querida. Resolvemos trabalhar essa questão com uma outra questão minha, na cena seguinte.
A Naty estava passando por uma questão que remetia a uma lembrança muito dolorosa, que remetia por sua vez a uma dúvida cruel. Naquele mesmo dia (ou seja, no dia de nossa cena) fazia aniversário aquele evento, e ela me contou que passara o dia inteiro ou parte considerável dele sofrendo a respeito. Tanto que chegou chorando, chorou mais um pouco antes da aula, falou com um amigo e falou comigo algo sobre o evento. Eu mesmo achava que ela estava muito fraca, e que poderia quem sabe desistir da cena, que para mim tudo bem. Mas ela decidiu continuar e assim fomos. No meu caso, eu não imaginara nada em especial e nem sabia o que iria ocorrer. Mas imaginávamos que iria dizer respeito a amor, de uma ou outra forma. E foi o que aconteceu.
Ulrika convidou-nos a criar e encenar um rompimento ou uma relação amorosa, de alguma forma, em que o ponto dramático estaria centrado no texto ou em alguma outra coisa. A Naty e eu escolhemos um rompimento, e com o recurso de não usarmos fala, nenhuma fala. Imaginamos o uso de um mote, um objeto, como representando esse rompimento, e esse objeto foi uma chave – usamos um chaveiro meu, que tem duas chaves. No caso dela, ela representou alguém que estaria me esperando em algum lugar público – imaginamos um café –, de alguma forma esperando uma retomada de um relacionamento. No meu caso, eu fazia o interlocutor, que iria desvencilhar-se de um objeto – a chave – e dar-lhe esse objeto, simbolizando o fim.
A Naty centrou-se naquele momento no seu problema particular, jogando a energia que tinha acumulada na cena, utilizando assim a clássica metodologia do realismo de Stanislavski. No meu caso, eu não sabia claramente a que me referir, mas lembrei-me, durante nossa conversa, de um momento, em minha relação com R, em que ela referiu-se a um povo de minha admiração e carinho com desprezo, que na hora eu exagerei ou levei exageradamente no pessoal (talvez eu tivesse imaginado errado, quem sabe). Lembro-me de que quando lhe contava (à Naty) desse momento, eu chorei e não pouco, recordando-me de detalhes disso com bastante força e emoção. Resolvemos fazer assim, então.
A cena foi simples. Nela usamos duas cadeiras, colocadas frente a frente, com um pequeno banquinho branco no meio. Ela optou por estar lá, sentada, já antes de eu entrar. Eu entrei e olhei para ela, que esboçou um contato visual. Olhamo-nos um pouco, eu visivelmente sem jeito, e ela também, de repente meio que forcei a lembrança do evento com aquela garota que falara mal daquele povo, comecei a chorar suavemente, sem olhar para a Naty, daí peguei a chave, que ela tentou segurar e que eu tirei com força de sua tentativa, daí fui tirando a chave com dificuldade (não era fingimento), depositei a chave no banquinho branco, e a dispus mais à frente dela, suavemente, como quem se desfaz de um pedaço do passado. Assim foi que fizemos, sendo que depois desse momento eu saí por onde chegara. A Naty pareceu-me tão afetada pela cena que depois permaneceu distante do pessoal, chorando um pouco. Eu mesmo estava acabado, literalmente. Não conseguia sequer olhar muito bem para todos. Não me lembrava mais do mote do meu choro, mas permanecia estranhado diante do que acontecia na minha frente. Lembro-me de que a Naty abordou o fato de não saber o porquê de uma outra pessoa não ter se emocionado durante um evento que a chocou (o mote dela), e que após a cena me disse que “você se emocionou mais do que aquela pessoa”. Eu achei bastante forte o fato de ela ter me colocado no papel dessa pessoa, como se eu realmente o representasse, o que não era afinal verdade.
Enquanto isso, no processo como um todo, o Pedro e eu continuávamos vendo opções para a cena entre Martin e David. Numa encenação, que a professora indicou que poderia ser feita comigo no chão e com ele meio que navegando um pouco atrás, ao redor de mim, resolvemos apostar nos mesmos motivos que antes, com uma diferença: a pedido do Pedro, que sugerira responder em silêncio ao momento em que ele dizia que se importava comigo e que se sentia mal com o que acontecia, eu assentira e na hora de responder a ele, eu perdera o tempo e portanto a cena ficara fraca (ao menos em minha opinião). Outra dificuldade era que eu me esqueço muito facilmente do texto, talvez por minha esquizofrenia, então perdia muito do frescor da cena ao ater-me àquilo que estava escrito, e com isso os tempos se estendiam sem nada ou praticamente nada acontecer. Isso era chato, e Ulrika insistiu que deveríamos acelerar o diálogo, até porque ele, ao menos em teoria, deveria durar o mesmo que a música, ou menos. A música era Sternkaltern, de Matti Bye, do cd Bethanien, que Pedro e eu escolheramos tendo como opção outras músicas, uma das quais a gente usara em um dos ensaios (num anterior, usamos uma música do Anthony Braxton, a Composition 105, que não funcionou a contento, e que foi substituída). A música escolhida durava pouco mais do que três minutos, e assim deveria ser a cena como um todo. Eu tinha que responder mais prontamente, em suma. Os comportamentos do Pedro no palco eu não conseguia ver, mas até o fim, ou seja, até a apresentação ele se preocupou em proporcionar uma presença mais fluida em cena, o que deve ter sido bastante difícil, dada a exigência física e de lembrança do texto, simultâneas, a que ele se submetia. Pedro ficava lá atrás, e eu à frente, tentava negociar com ele uma forma de nos comunicarmos sem nos comunicarmos. A questão da comunicação sempre esteve em questão durante o processo. Segundo Ulrika, a cena remetia a algo do teatro do absurdo, com o que ainda não sei se concordo, mas realmente algo me remetia a Beckett, pelo menos, embora fosse no fundo inadvertido – apesar de minhas (em especial, minhas) predileções pelo irlandês. Ficamos, por motivos de agenda, o Pedro e eu praticamente sem trocar ideias ou realizar ensaios antes da apresentação final. Mas isso não se mostrou tão fundamental, pelo que iríamos ver. Enquanto isso, as outras cenas também transcorriam, e nós víamos os resultados.
Aquele que viria a ser o último exercício da oficina em termos de criação de texto a partir de algum mote específico teve a ver com aquilo que a palavra Silêncio queria nos dizer, em particular, diante de nós mesmos. Fizemos esse exercício numa sala menor, em que estávamos porque outra turma liderada por outro profissional sueco precisara de uma maior, em que havíamos estado até lá. Nessa sala, nós havíamos desenvolvido exercícios de aquecimento em que como que simuláramos lutas entre nós, primeiro dois a dois, depois entre mulheres e homens, e depois de todos contra todos. Como eu tinha formação em karatê, me sentia à vontade no exercício, embora talvez passasse uma belicosidade excessiva, que eu tentava amainar ou a que tentava contrapor um aspecto bastante clownesco, exagerando as reações e caindo ou me batendo contra coisas ao redor, como se estivesse levando golpes fortes, à la Ultraman, animação japonesa que eu vira quando criança ou púbere.
O exercício escrito deu-se, em mim, em completa crise. Explico da seguinte forma, sem correr o risco de extrapolar detalhes pessoais. Na época, eu começava a me relacionar de forma um pouco estranha com P, e notara que ela, P, surgia especialmente nos momentos em que mantínhamos ou ela mantinha silêncio. Isso eu já percebera antes do exercício, mas não apenas com ela. Desde minha infância, eu sempre tivera dificuldade em ser ouvido ou compreendido, e isso eu retrucara, creio eu, de forma a evitar tanto ouvir como compreender, como se fosse uma pequena vingança de incompreensão. Ocorre que, após R, eu permanecera num mutismo estranho, dado que preferira me deixar invadir pelo universo de P a me impor, ou a tentar impor, minha visão de mundo, que por um lado era tudo o que eu parecia ter, mas que por outro lado deixava de me fazer sentir bem ao contar, e que por outro lado era eu, ou seja, parecia ser o critério por meio do qual eu poderia, se é que poderia, escolher o que queria da vida ou do amor. Foi então que eu percebera o quanto ela, P, se apresentava quando calava, ou o quanto ela me percebia quando isso acontecia o mesmo comigo, sendo que esse silêncio era algo que eu, por mais que quisesse, não poderia controlar, muito ao contrário. Era onde as coisas aconteciam. Daí que o exercício veio no momento certo, e que dizia respeito a uma questão que eu já começava a tratar em meu interior. Como sempre, me joguei por inteiro no exercício, e a tal ponto que, sem exagerar, eu sentira uma espécie de fraqueza ao final dele. A Ulrika falou comigo na hora e eu disse que estava tudo bem. Estava, sim, mas ao mesmo tempo algo de minha inapetência com comida surtira efeito. Mais que psicologicamente, eu estava também fisicamente fraco.
O texto originado foi este, abaixo.
Texto
Silêncio é quando eu começo a sentir o mundo, a mim e o medo. As pessoas que amo existem em silêncio. A palavra acaba e começa a ação. Dentro e fora. A P cria espaços na alma, como hoje quando vi como fazia dentro de si com minha camisa nova. E como espera meus movimentos, e como fica alerta, e como espera quem eu sou. Ou quando as pessoas más aparecem. E como falam do que não sabem. Porque têm medo principalmente de mim. Silêncio é quando deixo os outros entrarem, e quando me desespero, porque sei que então só haverá a verdade, e a verdade é que amo mas tenho medo. Silêncio acontece quando elas me enxergam, e eles também. E quando eu me mostro a mim - mas tenho medo. Silêncio é a origem do medo, do amor e do ódio. Quando tudo aparece, quando sou eu mesmo. Quando sou, e faço, e amo, e transo.
Silêncio é quando o amor pelo mundo surge, e eu morro, e renasço.
Silêncio é quando ela me quer. E quer vivo. Para mim. Para ela. Quando ela quer-me dentro.
Silêncio é ver o T em mim. E abordar e aceitar seu amor. E o amor deles.
Silêncio é amor.

Fim do texto
Desse texto, Ulrika pediu que selecionássemos duas frases, curtas, sem explicar na hora o motivo. Pegamos essas frases e as falamos para todos. Minhas frases foram as seguintes:
Trechos escolhidos do texto
Silêncio é quando o amor pelo mundo surge, e eu morro, e renasço.
Silêncio é amor.
Fim dos trechos
O próximo passo da oficina foi a encenação das cenas, todas juntas, num espetáculo ao qual convidaríamos, cada um, uma pessoa, e que seria apresentado na SP Escola, na sala preta (7º andar). Na medida do trabalho, a encenação consistiu na colaboração de todos, os quais ensaiamos algumas vezes cada uma das cenas, cada um restringindo-se à posição que achou mais conveniente, sendo que Ulrika tentou interferir pouco e assim foi que aconteceu. A apresentação correu ok, sendo que minha apresentação com o Pedro acabou ficando para a abertura do espetáculo. Não entendi bem por quê, creio que em parte por causa das dificuldades ou dúvidas em colocar música em uma das cenas anteriormente combinadas, mas não nos afetou, ao Pedro e eu, em demasia. Eu mesmo apreciei o fato, e emocionei-me várias vezes durante os ensaios e a apresentação (menos nesta). Foi interessante ver como o problema meu com minha família e mais especificamente com a figura do meu pai, que identifiquei fortemente com Martin, foi tratado por mim durante os ensaios e o espetáculo, tendo assim saído muito mais maduro a respeito. Os aspectos efetivamente pessoais não vêm, claro, muito ao caso aqui. Mas foi sumamente interessante tudo e por isso escrevi este longo texto, que servirá de base para algum trabalho que pretendo desenvolver em meu grupo.
Grato a todas/os e um grande abraço.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Gargólios, de Gerald Thomas

Da primeira vez que assisti a Gargólios, do Gerald (Thomas), na estréia, achei que não havia entendido. Alguns problemas aconteceram durante o espetáculo (a jovem pendurada, sangrando, passou mal duas vezes, as legendas estavam fora de sincronia, etc.) e um clima estranho parecia haver tomado conta do elenco - ou pelo menos assim eu percebi. De resto, entrei mudo e saí calado. Mas eu já havia combinado assistir novamente o espetáculo, com a Franciny e a Lulu. Minha opinião era de que o Gerald, como de praxe, iria mexer no resultado. Por isso, a opinião ficaria para depois. À la Kant, suspendi meu juízo. Ontem assisti pela segunda vez ao espetáculo. E para minha surpresa muito pouco mudou. Então era isso mesmo. Lembro de que minha última imagem do palco foi ter visto o Gerald saindo orgulhoso. A Franciny disse meu nome a alguem da produção, pedindo para falar com o Gerald. Ele não iria atender, e não atendeu. Lembro-me agora de Terra em trânsito, a peça dele com a Fabi (Fabiana Guglielm

(Em) Branco (de Patricia Kamis, dir. Roberto Alvim, Club Noir, 3as a 5as durante o mês de agosto)

Fui à estreia da segunda peça da leva de oito novos selecionados que o Alvim vai encenar municiado de sua leitura na noite anterior. Esperava ver algo relativamente tradicional e nutria um certo receio de déja vu. A atriz e os dois atores permanecem estáticos em quadrados iluminados por baixo. O caráter estático não se refere apenas ao corpo em contraponto com o rosto, mas também a este, mutável apenas (e repentinamente) por expressões fugazes. Os olhares permanecem fixos. O texto segue a ordem 1, 2, 3 (segundo o Alvim, emissores mas não sujeitos), que eu imaginava que iria entediar. As falas são ora fugazes ora propositalmente lentas e sua relação tem muito a ver com o tempo assumido em um e outro momento. Não irei entrar no âmago da peça. Nem irei reproduzir o que a própria autora, o dramaturgo Luciano Mazza e o próprio Alvim disseram no debate posterior a ela. Direi apenas que durante ela nossa sensibilidade é jogada de um lado a outro num contínuo aparentemente sem fim sem c