1 - Vou tentar comentar as posições de alguns/algumas de
minhas colegas com respeito às questões levantadas pelo texto “A ficção
interrompida”, de Júlia Guimarães Mendes, e os outros, que foram fornecidos por
intermédio do face, assim como em comentários escritos no post que começa com
um texto do Sarrazac.
Deixo claro que aprecio discussões áridas, mas que,
acompanhando-as há bastante tempo, hoje me incomodam por aparentarem ser uma
forma de “requentar” conceitos clássicos com outras roupagens ou por proporem
conceitos que, no frigir dos ovos, parecem não mudar muita coisa (daí minha
relutância em levar a sério propostas conceituais ditas alternativas). Minha
abordagem, aqui, será bastante idiossincrática, mas gostaria que fosse
rigorosa.
Como dramaturgo, ator e agora pretendente a crítico,
confesso-lhes que muita coisa, na questão humana (abordada assim, bem
amplamente), me incomoda. Quase tudo me parece ora superficial demais nas
argumentações em diálogo ou mesmo nos monólogos (supondo personagens que não
mais parecem chocar, com o taxista de “Desamor”), ora a abordagem de fenômenos
como intimidade (por exemplo) parece-me em linhas gerais bastante tosca (por
resumirem questões de clivagem interna em fenômenos concretos, por exemplo, em
relacionamentos), ora as discussões sobre a conjuntura política parecem-me ou
ingênuas ou tímidas, por parecerem fugir do que vemos (embora existam
espetáculos que nos confrontam com realidades mais presentes e menos
dependentes de discursos, no fundo, ideológicos – sem juízo de julgamento, pois
estes existem, de um lado ou de outro). Uma palavra em suma para tudo:
incômodo. É como se as coisas efetivamente não fossem BEM assim.
Sabemos, tocando en passant uma fala do Kil em aula, que
nossa sociedade – brasileira – é tendente a fugir do confronto e a realizar,
digamos, “acertos” em que, privilegiando o particular ou o grupal, todos
prejudicam o todo, mas aqui abordo o fato de ela também e efetivamente parecer
não dar nome aos bois, em assuntos que ficam bastante expressos mas que nos
defrontam conosco, por exemplo. Ou seja, restrinjo-me aqui ao caráter
procastrinador que nós mesmos fazemos, enquanto seres sociais ou mesmo
indivíduos isolados, de não vermos as coisas como efetivamente são e dar-lhes
os nomes que merecem. Ou seja, falseamos a nós mesmos, antes de mais nada. Já
direi a que me refiro, especificamente, mas no que diz respeito a como vemos o
teatro, no contexto de nossa discussão sobre a crítica.
2 – No texto “A ficção interrompida”, vejo uma argumentação
que varia da seguinte forma. Primeiro, o naturalismo do teatro tradicional.
Depois, em oposição, o distanciamento brechtiano. Depois, assumindo este último
insuficiente, uma nova naturalização da teatralidade enquanto teatralidade,
quase evento performático (cujos exemplos vejo a rodo há bastante tempo). Em
seguida, o estranhamento do próprio teatro nele mesmo. E final ou
aparentemente, a abordagem do real pelo próprio real no teatro, no evento. Não
sei se sou muito esquemático nisso tudo, confesso, mas me desagrada ficar preso
a palavras que parecem significar muitas coisas. Vejo tudo como uma espécie de
processo de fuga de limitações, e de apoio em novos recursos para questionar o
que foi anteriormente dado. Seja como for, meu incômodo, confesso, permanece.
Incômodo que aparece, em mim ao ver espetáculos de Grotowski em que a América é
transformada em evento a ser pensada quando, ao ser vista sendo encenada, quer
mais, pelo público presente, ser curtida ou auto-referenciada (como uma espécie
de mito redivivo). O cara quis criar um divertimento que estranhasse ou fizesse
pensar, mas no fundo acabou repisando imaginários que, dada a ênfase
interpretativa do público, caíram na mesma obviedade de espetáculo para ser
admirado como diversão e que só reforçou (nesse caso, da forma como foi
apresentado) posturas tradicionais.
Daí pergunto: NECESSARIAMENTE, o teatro tradicional
naturaliza as relações? O distanciamento brechtiano questiona, realmente? A
teatralidade em si diverte e, do seu jeito, faz pensar? O estranhamento
realmente estranha ou só reforça discursos que se dizem alternativos, e que por
virarem alternativa conhecida só promovem o acomodamento? Por exemplo, fácil
dizer, seguindo Bauman, que as relações se liquefazem. Ok, tudo bem, há um movimento
aí; mas não seria interessante questionar se isso é verdade e não simplesmente
repisar o argumento? Ou seja, tantas formas de abordar o relacional realmente o
submetem a incômodos? No meu caso muito particular, confesso que pouco me
incomoda – mas isso só parece, NO MEU CASO, acontecer quando realmente parece
haver algo, na encenação, no texto ou na proposta que realmente DESNATURALIZA
todos esses discursos, que, para um bom frequentador de teatros, parecem
bastante conhecidos, por um lado, aceitos, por outro, e finalmente, digeridos
(muitas vezes como se não nos dissessem respeito!). Muitos dizem conhecer o
universo de um Genet e compreender sua posição; será mesmo? Conseguem realmente
entender o que significa ser marginal ou precisam de um Orange is the new black
para, com roupagens agradáveis, tentarem vislumbrar esse novo e tão velho
mundo?
3 – Eu já havia me referido um pouco a essa questão do
efetivo questionamento dos discursos. Não me esqueço – não estou pegando no pé
– daquela peça do ex-aluno do Antunes, de cujo nome não me lembro, encenada por
Vera Sala. Esta fazia algo que parecia não estar contemplado no script, no
programa (um personagem quase inumano que se movimentava dificultosamente e que
questionava a própria noção do movimento). Mas duas coisas me incomodavam. Ao
fazer o que fazia (e que até que era interessante), o espetáculo não estava no
fundo chamando boa parte da plateia de, efetivamente, “burra” ou no mínimo
ignorante, por esta, em grande parte, não conseguir entender aquilo, com seus
próprios recursos interpretativos? Por outro lado, qual era efetivamente a
proposta daquilo? O cara mediano, por exemplo, não deveria ter entendido. Mas
acaso a proposta não deveria ser discutida e o artista sair do seu pedestal?
Será que a plateia hoje serve, em grande parte, efetivamente para decifrar
discursos? Lembro-me de que um espectador de uma peça minha pegou-me após o
espetáculo e me disse que tava louco para gargalhar (o que poderia me deixar,
ENQUANTO PESSOA, no ridículo). Eu lhe disse: ora, mas devia ter feito, perdeu a
oportunidade. Se é isso que te causou, por que se conteve? Eu, particularmente,
não desmereço a opinião do suposto ignaro: ele tem motivos para sentir o que
sente, e verifico que muito do que os encenadores dizem que se propõe a X
efetivamente não consegue chegar lá, ora por arrogância, ora por ensimesmamento
preciosista, ora por simples incompetência.
4 – Daí que não me canso de ver espectadores de produções
estrangeiras tentando “sentir” aquilo a que efetivamente o espetáculo se
propunha NA ORIGEM, ou pelo menos ENTENDER a mensagem original. Já se um dito
tupiniquim acha aquilo simplesmente chato ou se argumenta que nada tem a ver
com sua realidade é na hora tachado de ignorante. Por que isso? Parece-me
também que muito do que é produzido é sintomaticamente criado com o intuito
expresso de cativar o bem-pensante. Ou seja, como se fosse necessário entender
um discurso prévio para realmente gostar do que se vê. Imagino como seria para
o público lá da Inglaterra áurea de Shakespeare aguentar personagens que não
lhe dizem efetivamente respeito. Acaso é necessário criar novas posturas diante
do teatro ou simplesmente esforçar-se para criar personagens mais
interessantes, cuja postura – apesar do realismo – possam motivar efetivamente
um crescimento interpretativo pelo espectador? Por que tantas discussões sobre
forma? São apenas questionamentos. Já quando o bem pensante resolve questionar
e buscar o novo, em que acaba recaindo quase sempre? Se a discussão é muito
árida e apolínea, pronto, na catarse. Se os espetáculos parecem não ter eira
nem beira, na retomada da importância do texto. Se a trama é insossa, no
questionamento da estrutura, do político. Parece-me que existe uma dificuldade
bastante grande de encarar o espetáculo como espetáculo, e, com rigor
necessário, vislumbrar os critérios para avaliação enquanto espetáculo mesmo, e
não enquanto ideia a ser expressa (muito embora em muitos casos isso possa ser
interessante). Por isso sempre questiono que haja tanto ego por aí. Parece-me
que nós, críticos, tendemos a dar maior importância ao idealizador, ao criador
da ideia, ao encenador, que àquilo a que tradicionalmente o teatro e o público
dá maior importância, simplesmente o ator. Como o próprio Mamet diz, afinal.
Podem me chamar de ingênuo, mas será? O que é que o artista que efetivamente
mais trabalha com teatro realmente valoriza? A ideia? Ou a atuação? Parece-me
haver uma distância bastante grande entre quem pensa e se dispõe a pensar e
outros, mais comedidos, que embora pensem percebem que isso não é para aquilo
(pensar ou dar ideia a ninguém). Acaso não seria também fundamentalmente
necessário ao crítico entender da atividade, ao invés de das histórias que lhe
dizem respeito? Não discordo quando um crítico avalia uma atuação fraca, por
exemplo, se efetivamente ele tem argumento vívido a respeito.
5 – Não creio com isso me meter a desconsiderar a oposição
entre o “modelo” de tragédia tradicional, aristotélico, com o “trágico”
posteriormente defendido, como o próprio Sarrazac nota no começo de seu texto,
nem o fato deste trágico assumir formas diferenciadas e sobremaneira
interessantes, mas questiono: isso basta? Basta compreender que o autor e os
atores souberam captar a mensagem e passá-la (algo ridicularizado por diversos
diretores, como se teatro precisasse passar mensagem) ou na verdade seria
necessário perceber em que medida o teatro efetivamente feito passa algo que
escapa desse tipo de enquadramento e que, isto sim, torna-o eterno (personagens
eternos, conflitos insolúveis internos, etc)? Só questiono. Incomoda-me também
o caráter irresoluto, tímido, de certos críticos ou de certos espectadores que,
não sabendo o que acontece, mas achando que não podem deixar de saber, ou
achando que pega mal não saber, simplesmente se escudam em teorias ou
enquadramentos prévios que podem (ou não) ter a ver e simplesmente ESCAPAM do
espetáculo. Mas ocorre que o crítico, antes de mais nada, é um espectador,
supostamente qualificado, mas espectador. Entender Borkman, do Strindberg, é
uma coisa; isso qualquer um sabe; mas senti-lo (na identificação com o ATOR) é
outra; e, A MEU VER, isto último é mais teatro do que a ideia, supostamente,
fielmente ou ridiculamente defendida. A meu ver, também, essa incapacidade ou
recusa de sentir, sem desmerecer o rigor que isso pressupõe, leva muitos a
simplesmente não reconhecerem o surgimento de personagens clássicos porque
eternamente inovadores. Porque ao crítico interessa saber em geral se Navalha
na Carne foi bem encenada; ao ator saber quem faz Neusa Sueli! E ao espectador?
Este se contenta em saber se o espetáculo foi bom ou na verdade quer sair
maravilhado com o desempenho de sei lá quem? Pois a meu ver é isso o que os
ignaros buscam quando vão ver um global fazendo um papel. Ver em que medida o
sujeito realmente os agrada enquanto profissional da atuação. Como se vira. Não
que, claro, um crítico deva necessariamente se limitar a isso, óbvio.
6 – Ok, drama-da-vida contraposto a drama-na-vida. Tudo bem,
Hegel aqui e a modernidade ali. Há algo a ser dito a respeito? Muito, claro,
para quem quer refletir e ver para o mundo vai (eu, inclusive). Mas não sei
(digo, não sei) se efetivamente essa interpretação interessa TANTO (e me
desculpem os mais cabecinhas como eu). Pois, sem me render ao juízo dos supostamente
ignaros, estes reconhecem muito mais, em quase qualquer peça, do que
simplesmente aquilo. Que a vida tornou-se ela própria dramática, ok. Mas que
esse drama tenha que ser apresentado de forma hermética para iniciados, disso
acho que quase ninguém concorda. Daí a distância entre uma peça ou um texto
bons ou ruins. Ou uma encenação boa ou ruim. Mas claro, tenho dúvidas, pois em
que medida o crítico poderia perceber a renovação daqueles autores citados pela
crítica Elen, antes mesmo dos clássicos modernos mais reconhecidos, se não se
dispusesse a entender e dominar os modelos clássicos e a compreender por dentro
as, digamos, “mensagens” de estranhamento neles contidas? Não dá para
simplesmente limitar-se ao espetáculo. Mas se a autora em questão começasse a
simplesmente divagar em elucubrações e não se referisse efetivamente às obras e
aos espetáculos, deixaria a meu ver de ter tanta atratividade em termos de
discussão. Bom, paro por aqui. Tentarei mesmo ir amanhã. Não sei se
conseguirei, admito.
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